Integração latino-americana, a grande ausente
A unidade latino-americana será necessariamente obra das classes exploradas e oprimidas, de baixo para cima, contra o imperialismo e as burguesias internas
No final de 2024, fiz a primeira viagem internacional da minha vida. Passei dez dias na Colômbia, conhecendo as cidades de Bogotá, Cartagena e Zipaquirá. A visita à Colômbia, especialmente em Bogotá, com estátuas, símbolos e referências onipresentes a Simón Bolívar, chama a memória de algo importante: a integração latino-americana. Estou convencido de que é correta a tese de que nosso continente é uma pátria balcanizada, dividida em várias fronteiras artificiais, mas com uma clara unidade cultural, étnica, linguística, geográfica e de sentido histórico. Unidade, é claro, não significa ausência de pluralidade e particularidades de cada território e povo. Somos um único povo diverso.
Nesta unidade latino-americana, o Brasil tem, naturalmente, um papel central. Pelo tamanho da sua economia, território, população e localização geográfica, o nosso país é um fiador da balança no nível de integração ou não da América do Sul e de toda a nação latino-americana. Esse papel de liderança natural, contudo, não se confunde com legitimar qualquer postura hegemônica e subimperialista do Brasil. A liderança brasileira, para merecer tal nome, precisa estar alicerçada em valores anti-imperialistas, solidários, internacionalistas e democráticos.

(Foto: Governo do Estado de São Paulo / Flickr)
Ao mesmo tempo, o imperialismo, primeiro o britânico e depois o estadunidense, sempre entendeu bem que é fundamental estimular rivalidades regionais, criar confrontos e antagonismos infrutíferos e garantir que o Brasil, em particular, siga buscando as luzes na Europa e recebendo ordens dos Estados Unidos. Mas se o problema fosse “apenas” o imperialismo, a nossa tarefa histórica de construir uma Pátria Grande Latino-Americana seria mais fácil. As burguesias internas de cada país, classes dominantes-dominadas, são refratárias a toda ação efetiva de integração. Cada bloco dominante dos diversos países de Nuestra América busca manter a relação de dependência-subordinação com o imperialismo, reprimindo sempre que possível a unidade latino-americana, construindo, no máximo, unidades contrarrevolucionárias – como a Operação Condor – e blocos para meras relações comerciais, sem horizonte estratégico de anti-imperialismo e soberania econômica, produtiva e tecnológica.
Em suma, como ensinou José Carlos Mariátegui há cem anos, a unidade latino-americana será necessariamente obra das classes exploradas e oprimidas, construída de baixo para cima, contra o imperialismo e também contra as burguesias internas e suas bases de sustentação social – é notório e histórico como um amplo setor das camadas médias dos países latino-americanos se sente confortável com a dependência e vive com o sonho de ser francês, estadunidense ou britânico nos trópicos.
Uma efetiva integração latino-americana em bases anti-imperialistas e de superação da dependência significaria o golpe mais duro da história no sistema imperialista liderado pelos Estados Unidos. Mais do que a derrota no Vietnã, a Guerra da Coreia, a Revolução Cubana ou qualquer outro evento que se possa imaginar. Neste debate sobre o declínio da hegemonia dos Estados Unidos e “multipolaridade”, é preciso saber que, enquanto a América Latina for uma reserva estratégica do imperialismo, o caminho de tal declínio ou fim do controle mundial estadunidense vai perdurar por anos e mais anos.
Nós, latino-americanos, temos a mais importante tarefa na luta anti-imperialista mundial. A nossa libertação será a maior vitória da luta anti-imperialista da história do mundo moderno. Esse é o tamanho da nossa tarefa. No caso brasileiro, em particular, o desafio é agravado pelo histórico afastamento dos demais países da América e pela forma como, na cultura política e nos marcos teóricos dos partidos, sindicatos, movimentos sociais e intelectualidade, estamos quase totalmente apartados dos nossos vizinhos.
A situação brasileira ganha ares de patético em vários momentos. Por exemplo, o partido espanhol Podemos surge inspirado no bolivarianismo chavista. A Revolução Bolivariana e o Novo Constitucionalismo latino-americano influenciaram uma série de organizações e intelectuais na Espanha, Portugal, França e afins. A esquerda brasileira, em média, simplesmente ignorou esse processo e mostrou extrema hostilidade para com Hugo Chávez e seu projeto bolivariano – enquanto adorou a novidade espanhola, e não faltou quem tomasse o Podemos e Pablo Iglesias como o caminho para renovar a esquerda brasileira. A matriz latino-americana foi repudiada, a filial europeia adorada.
A situação tende a piorar ainda mais porque, hoje, a maioria do que se entende por progressismo é uma subsidiária do Partido Democrata dos Estados Unidos: cada vez mais colonizada, liberal e com a cabeça voltada para o norte do mundo. Frente a tudo isso, é tarefa urgente e indispensável que os revolucionários e revolucionárias de todo o Brasil coloquem na ordem do dia dois movimentos conjuntos e indissociáveis. É preciso latino-americanizar o marxismo brasileiro, travar intensos contatos e aprender com a produção teórica e a luta das classes exploradas de toda Nuestra América. Faria muito bem ao marxismo brasileiro, por exemplo, tomar ciência do acúmulo argentino e venezuelano sobre a questão nacional; das contribuições teóricas bolivianas e peruanas sobre a questão indígena; da experiência prática e formulação teórica cubana e venezuelana sobre a questão militar, etc.
Ao mesmo tempo, é preciso intensificar as articulações, campanhas conjuntas, ações de solidariedade e afins em toda a América Latina. É necessário impor uma agenda de integração latino-americana como parte fundamental da luta contra a extrema direita e da resistência à nova ofensiva de Donald Trump. Perdemos tempo nessa luta. O progressismo abandonou o sonho de Simón Bolívar. Cabe a nós, aqueles que defendem a Revolução Brasileira, ter consciência de que essa revolução é parte do processo revolucionário continental que terá de criar a Pátria Grande Socialista. Ou nos integramos, ou continuaremos no papel de escravos do império.
(*) Jones Manoel é historiador, professor, mestre e doutorando em Serviço Social, escritor, educador, comunicador popular e militante comunista.
