A pergunta parece nos levar ao menos duas décadas atrás, quando muitos dos leitores formaram sua percepção sobre o conceito de terrorismo a partir da reação global comandada pelos EUA, com seus aliados europeus no Conselho de Segurança da ONU, à derrubada dos edifícios gêmeos em Nova York, atribuídas a um grupamento criado, treinado e financiado pelos EUA décadas antes no Oriente Médio.
Naquele momento histórico, desde o futebol ao cinema, das conversas de bar aos desenhos animados, o estereótipo do terrorismo assolando o “mundo civilizado” era o fio condutor da convivência social, tudo refletia essa percepção de um mal a ser combatido como devir existencial, sustentado por imagens de um horror desumano que, por sua vez, comunicava: se trata do chamado à batalha contra inumanos, desprovidos daquilo que definiria a humanidade. Logo, a guerra deve ser total, com todas as forças e sem qualquer oposição.
Ao ligar a televisão, em qualquer canal, em qualquer horário, dos programas de amenidades matutinos aos noticiários, passando pelas fofocas e filmes de sessão da tarde, até os talk-shows noturnos, todos faziam questão de exibir histórias de famílias devastadas, atos heróicos de bombeiros, mobilizações cívicas de voluntários, preparativos bélicos militares. Conhecemos nos detalhes de terceira geração cada vítima, vimos seus amigos, namorados, parentes, filhos, colegas de trabalho, animais de estimação. Cada vítima extremamente humana do terror.
Com tudo isso formamos nosso entendimento de terrorismo. O mal maior, a bestialidade insuportável até entre os brutos. Satíricos complementavam com bazófia a caricatura do terrorista. A mote de dar uma “outra” visão sobre o demônio, criavam personagens com roupas e costumes típicos, vivendo vidas em cavernas e tendas onde confundiam coxinha de galinha com granada, jogavam boliche com bombas com pavio aceso, etc. Não se tratava assim de outra visão, mas da mesma, sob a permissão do ridículo com a dor ocidental. No fundo, um complemento útil e necessário, vejo hoje, à delimitação da figura do terrorista, o agente do terrorismo.
É muito fácil para os canais de televisão, seus jornalistas e grupos de mídia impressa e de internet repetirem hoje que a ação militar da resistência palestina foi um ato terrorista. Estamos há um ano repetindo sem qualquer contraponto que se trata de terrorismo matar centenas de civis num único dia. Contudo, a ação que matou cinco centenas de civis no Líbano recentemente, ou seja, um acontecimento idêntico, dessa vez promovido por Israel, não teve uma única citação em praticamente lugar nenhum com a mesma palavra.
Por que o assassinato de centenas de pessoas num único dia, em acontecimentos sem causalidade entre si, são tratados um como terrorismo inquestionável e outro sequer tem aventado o caráter terrorista?
Diante desse paradoxo, qualquer leitor bem instruído tentará dar um passo atrás e procurar além da semelhança dos fatos uma abstração sobre o conceito de terrorismo. Respeito o exercício e farei agora.
Segundo a ONU, conforme a resolução 48/60 de 1994 da sua Assembleia Geral, terrorismo são “atos criminosos planejados ou calculados para provocar estado de terror no público em geral, num grupo de pessoas ou em particulares por motivos políticos”.
Por essa definição não é necessário sequer haver mortes para ser enquadrado como ato terrorista. Mas os atos citados na definição geralmente são atos homicidas, levando um grupo maior a temer por suas vidas. Assim, as mortes de 7/10/23 e as de 23/9/24 encaixam-se ajustadamente no largo conceito.
A abstração jurídico-política nos deixa, assim, no mesmo lugar. Como atos igualmente terroristas à luz da definição da ONU são tomados de forma tão diferente por quase a unanimidade da mídia, sem que essa tenha qualquer acordo obscuro de manipulação?
A resposta, a meu ver, não é a existência de qualquer sala de comando noticioso entre a AP, Reuters, AFP, EF, etc. Tampouco um órgão secreto em Washington com censores que definem os rótulos e, a partir deles, as notícias. É algo bem mais simples, tangível e à vista de todos.
No acontecido do ano de 2023 não bastou o pronto reconhecimento da diplomacia brasileira do caráter terrorista da ação; foi cobrado em uníssono pela mídia liberal, e pelos que se dizem de esquerda que paradoxalmente se instruem por essa mídia, que Lula definisse também os perpetradores como essencialmente terroristas. Há uma exigência de pronto pela caricatura do terrorista como introjetada socialmente: o esteriótipo do islâmico. Da mesma forma, no ato terrorista recente, o mecanismo cognitivo trabalha no caminho inverso: se não partiu do esteriótipo do terrorista, não foi terrorismo.
Não há um estudioso sério, um profissional de relações internacionais, história, geopolítica ou áreas a fim que não reconheça a prevalência global geoeconômica dos EUA desde o fim da Guerra Fria, bem como sua dominância no chamado ocidente desde o fim da Segunda Guerra. Falo aqui de consensos entre opositores e defensores.
A partir dessa identidade geopolítica, ou seja, desse fato inquestionável, para alguns positivo e para outros negativo, se extraem duas considerações gêmeas com valoração oposta. Enquanto uns chamarão de “valores ocidentais”, defendendo sua universalização, outros chamarão de hegemonia ou, com maior precisão, imperialismo.
Esta prevalência, o imperialismo, impõe a hegemonia dos chamados valores ocidentais, com o objetivo único de se tornarem universais. É, portanto, a universalização do particular, logo, a subversão da diversidade, tanto quanto das possibilidades de consensos básicos dentro dessa multiplicidade. Uma violência epistemológica a serviço do exercício da força, instrumento do poder no teatro interestatal.
Desta forma, relegando à insignificância as abstrações jurídico-políticas das instituições do pós-Segunda Guerra, prevalecem as caracterizações maniqueístas do hegemon. É terrorista aquele que faz X ou Y se este for adversário do hegemon e daqueles que devem obedecê-lo. Não é terrorista aquele que faz X ou Y se for aliado do hegemon, a mando dele ou ele próprio.
É inclusive bem fácil de entender. Como em qualquer governo despótico, baseado diretamente na força sem intermediação de regras e instituições (o que o ocidente gosta de chamar de ditaduras), o bem e o mal não são essência de nada, apenas rótulos dados pelo príncipe, pelo soberano. Esse é o real funcionamento das chamadas relações internacionais, atrás das camadas de instituições e regras que o hegemon impõe aos vassalos enquanto age acima delas.
Assim como as instituições econômicas de Bretton Woods foram solapadas pelos mesmos EUA que as criaram, as instituições da ONU vem sendo paulatina e cada vez mais acintosamente desidratadas por Washington. Israel é hoje o braço armado racista que melhor evidencia a hipocrisia da diplomacia estadunidense.
Então, até quando o mundo assistirá inerte? Ora, o conselheiro presidencial Celso Amorim respondeu recentemente, num think tank de Nova York, que o Brasil, a China, a Rússia e a maior parte do Sul Global operam com a consciência de que as “relações internacionais baseada em regras” são a expressão do definitivo abandono do “direito internacional”. Se o último emula a figura jurídica do capitalismo intra-estatal no interestatal, o primeiro é o retorno ao puro poder do príncipe, que edita regras a todos e a nenhuma se submete.
Não está distante, portanto, que novos coletivos de países, ou mesmo Estados solitariamente (como fez a Rússia), passem a agir como polícia do mundo, “baseados em regras” e ao arrepio do “direito internacional”, como fizeram EUA e Reino Unido no início do século no Oriente Médio, para combater o terrorismo, o genocídio e outras formas de violência que julguem insuportáveis.
(*) Samuel Braun é professor de políticas públicas na UERJ, doutorando em Economia Política Internacional (UFRJ), mestre em ciência política (UFRRJ) e cientista social (UERJ).