Jojo Rabbit: boa crítica e falsificação histórica
Jojo Rabbit é uma crítica à propaganda de guerra. Mas finaliza com outra propaganda, de uma guerra não resolvida com o fim das hostilidades em 1945
Demorei para assistir a obra de Taika Waititi, “Jojo Rabit”, premiado filme que saiu no Brasil em 2020. Ao leitor acostumado à crítica de cinema talvez soe um pouco estranho retomar uma obra que já tem alguns anos. No entanto, há uma dimensão do filme que foi pouco explorada pela crítica e que, a meu ver, não poderia ter sido negligenciada.
O filme é cativante. Para quem não assistiu, trata-se de uma ficção ambientada na Alemanha nazista. Jojo é um menino de dez anos de idade, obcecado por Hittler, que é também seu amigo imaginário. Desejando ser útil para o esforço de guerra e chateado pelo bullying que sofre por parte de adolescentes que insinuam que seu pai é um desertor, Jojo envolve-se em um acidente, ficando com ferimentos graves que marcarão seu rosto. Sua mãe, Rosie Betzler, tem uma visão diferente da guerra, posição que vai se revelando ao longo do filme. O complicador da história está no fato de que Rosie esconde uma jovem judia em casa. A descoberta, chocante para o pequeno admirador de Hittler, fará com que suas visões sofram mudanças no percurso do filme. Além de Jojo e Rosie, a história traz outros personagens marcantes, como o Capitão Klenzendorf, desastrado militar que chefia o acampamento jovem onde Jojo sofre o acidente, Fraulein Rahm, uma mulher em armas, sempre pronta a defender o führer, e a menina judia Elsa Korr. Todos esses personagens aparecem na trama com algum momento de destaque e certa comicidade, tornando a narrativa leve, envolvente e em muitos momentos cômica.
O filme reconstrói a imagem de um povo capturado pela propaganda de guerra, do qual o pequeno fanático de dez anos é uma alegoria muito bem-sucedida. Os estereótipos sobre os judeus, disseminados pelos ideólogos nazistas, habitam o imaginário infantil de Jojo, que passa a empenhar-se em criar uma descrição detalhada dos perigosos inimigos, desumanizados pelo discurso nazista. Ao mesmo tempo, Rosie Betzler encarna discretamente a resistência, lugar onde o belo insiste em subsistir, apesar de toda a aspereza do entorno. Pouco a pouco também a jovem Elsa cresce na narrativa, revelando em sua vontade de viver – e de lutar pela vida – os vestígios de uma infância interrompida pelo horror.
Não há nenhuma possibilidade do espectador de Jojo Rabbit colocar-se ao lado dos nazistas. Enquanto crítica da ideologia totalitária, a obra é um sucesso absoluto: sensível, ferina, cativante. O problema está na solução final do filme. Não se preocupe, eu não vou contar o que acontece com os personagens. Mas todos sabemos como terminou a guerra: os alemães perderam.
Jojo Rabbit termina com o fim da guerra. E é aí que entra a falsificação histórica. Ao longe ouve-se os estrondos de bombardeios e os alemães dizem, alarmados, que os russos estavam chegando a Berlim. Pouco depois, um pequeno destacamento organiza-se para defender a cidade contra os russos. Mas quem adentra a cidade? tanques yankees. No alto de um edifício em escombros, diante de um exército alemão derrotado e de algum resquício de resistência dos próprios cidadãos (incluindo crianças de armas em punho), agita-se uma bandeira: ela é azul, vermelha e branca. A bandeira dos EUA flamula como símbolo da liberdade e da derrota do horror nazista.

Tanques norte-americanos ocupam a Alemanha nas cenas finais de Jojo Rabbit.
(Foto: Reprodução / Jojo Rabbit)
O falseamento da história em Jojo Rabbit entra em cena nesses minutos finais. Na vida real, quem tomou Berlim foram os soviéticos. Os primeiros campos de concentração foram descobertos pelo exército vermelho e por sua mão foram os primeiros sobreviventes libertados. Era vermelha a bandeira que tremulava no alto do Reichstag naquele 2 de maio de 1945. Nesse dia, as emissoras britânicas de rádio interromperam sua programação para anunciar o fim da guerra: “Caiu Berlim. O marechal Josef Stalin acaba de anunciar a ocupação completa da capital da Alemanha”. Nessa data as tropas dos EUA ainda estavam distantes de Berlim. Mas não em Jojo Rabbit. No filme os russos estão distantes e no alto de um edifício tremula, triunfante, a bandeira da liberdade americana.
O que justifica o falseamento quase tosco no final do filme de Taika Waititi? Em que ganha a trama com o apagamento da vitória militar soviética? Em nada. Sua crítica ácida e bem construída ao regime nazista em nada perderia se se mantivesse fiel à história. Alguém poderia argumentar que a obra de arte não tem nenhum compromisso com o real. De fato, a arte está acima do real. No entanto, trata-se de uma construção que mescla o imaginário com os fatos históricos. Numa obra assim, a ficção está ambientada em um mundo realmente existente. Não há um universo imaginado pelo autor. A trama desenrola-se num tempo e num espaço demarcados historicamente e é isso que empresta ao filme a tangibilidade necessária ao efeito crítico que deseja criar.
Jojo Rabbit é uma crítica à propaganda de guerra. Mas finaliza com outra propaganda, de uma guerra não resolvida com o fim das hostilidades em 1945: a do capitalismo X socialismo. Subsiste no filme o imaginário da Guerra Fria ressignificado de nossos tempos, em que se luta pelo controle da narrativa histórica. Revisionismo e falseamento: duas armas simbólicas em uso na guerra que se trava em nossos dias.
(*) Rita Coitinho é socióloga e doutora em Geografia, autora do livro “Entre Duas Américas – EUA ou América Latina?”, especialista em assuntos da integração latino-americana.