O australiano de 52 anos que acaba de conseguir sua liberdade, após anos de encarceramento no Reino Unido a pedido dos EUA, representa para Washington um enorme inconveniente geopolítico que rasga todo o seu discurso liberal de valorização da imprensa livre, das regras internacionais e da liberdade individual e de pensamento.
Assange liderou em 2006 um grupo de ativistas que se uniram para tornar públicas informações de interesse público mantidas em segredo por décadas por grupos e governos poderosos. Comprovando o domínio dos Estados Unidos num mundo unipolar, a maioria destes segredos envolvia diretamente, e geralmente como principal personagem, o governo estadunidense. Tais revelações o tornaram rapidamente o maior perseguido político da contemporaneidade.
O site que abrigava este grupo de ativistas, o WikiLeaks, se tornou realmente conhecido em 2010, quando divulgou imagens de um assassinato em massa cometido por um helicóptero militar dos EUA no Iraque. A aeronave Apache abre fogo contra um grupo de pessoas, entre elas os jornalistas da Reuters Saeed Chmagh e Namir Noor-Eldeen, e outras dez pessoas, matando todos enquanto os militares estadunidenses riem sem parar.
Nesse mesmo ano o WikiLeaks divulgou pro mundo outros 490 mil documentos militares e diplomáticos dos EUA sobre o Iraque e Afeganistão, exibindo também assassinatos de civis e jornalistas, bem como atos de puro terror armado levados a cabo pelos EUA e seus aliados, que tornaram cada vez mais impossível à Casa Branca justificar a “guerra ao terror” que promoviam no Oriente Médio.
Os ativistas do WikiLeaks passaram a ser perseguidos e tiveram que se espalhar pelo mundo, em locais desconhecidos e usando estratégias de ocultação de localização online para se proteger. Assange recorreu a esse expediente até que precisou se refugiar na Embaixada do Equador, em Londres, para escapar da perseguição dos EUA, Reino Unido e Suécia.
Assange divulgou ainda informações que mostravam o envolvimento da CIA na criação do grupo terrorista ISIS (“Estado Islâmico”), apontando mais de 531.525 documentos diplomáticos e de inteligência entre os EUA e a Arábia Saudita, inserindo o ISIS no mesmo esforço de Guerra Fria contra a União Soviética e o comunismo que levou os EUA a criarem a Al-Qaeda.
Os documentos divulgados são verdadeiros e originais, arquivados em segredo pela Casa Branca, nenhum deles foi manipulado, escrito ou tirado de contexto pelo WikiLeaks. Tais documentos contam a história hoje muito bem conhecida em todo mundo do financiamento, treinamento militar e armamento dos denominados “freedom fighters” contra as nações socialistas levado a cabo pelos Estados Unidos, e como esses grupos foram servir, décadas depois, para os próprios Estados Unidos justificarem sua “guerra ao terror” contra o Oriente Médio.
Na década de 1980, os EUA criaram tais grupos como forma de golpe armado contra nações socialistas (que emergiam com inclusão social, étnica e de gênero no Oriente Médio) promovendo o extremismo religioso a soldo dos interesses imperialistas. Depois, usando esses grupos (que eles mesmos criaram) como desculpa, atacaram países que tentavam uma economia política internacional altiva e soberana, a ponto de devastarem até mesmo a florescente Líbia, no contexto da jornada decenal de guerras tradicionais e híbridas, com as “revoluções coloridas”, promovida pelos EUA e seus aliados europeus.
Assange está indelevelmente marcado nos livros de história por expor ao mundo a outra história geopolítica que os EUA e seus aliados tentavam esconder. Desnudou, por exemplo, como os EUA espionavam a Presidência do Brasil em meio aos preparativos para o golpe de Estado contra Dilma em 2016.
A exposição sistemática de como Washington faz o contrário do que propagandeia como regras universais de respeito à democracia e ao direito internacional tornava prioritário, para a superpotência do sistema interestatal, silenciá-lo. E o interesse objetivo geopolítico de se manter como hegemon mostrou-se estruturante ao sobrepujar o jogo de luz e sombras geralmente encenado entre Democratas e Republicanos na política interna. São os liberais democratas, aliás, os que mais querem silenciar a liberdade de imprensa e esconder os crimes estadunidenses contra a democracia.
Apeados do poder direto em 2016, por razões que inúmeros estudos de ciência política apontam, os Democratas passaram a acusar Assange de colaboracionismo com a URSS, digo, com a Rússia, num revival de Guerra Fria. Em relatório feito no Senado, e defendido pelos principais professores universitários estadunidenses, o WikiLeaks teria nascido bom, por supostamente se propor a “devassar governos corruptos de todo o mundo”, mas se tornou ruim quando focou nos EUA.
Chegam ao absurdo de usar uma ação de cartel e/ou intervenção estatal no livre mercado – dois supostos anátemas para os liberais – como “prova” de tal degeneração do WikiLeaks. Me refiro aos bloqueios feitos pelas gigantes estadunidenses Amazon, PayPal, Visa e Mastercard contra qualquer pessoa do mundo que tentasse financiar o serviço feito pelo WikiLeaks. Ora, as “vacas sagradas” do capitalismo desregulado agiram em conjunto e contra qualquer lógica de mercado, atendendo estritamente às ordens do governo estadunidense, cerceando qualquer forma de transação financeira do WikiLeaks. Este, aliás, prenúncio do que os EUA fazem hoje com o dólar e o SWIFT contra nações rivais, rasgando todo o discurso de tecnicidade apolítica das instituições financeiras ocidentais.
Parecem não perceber que esta interpretação dos fatos por si mesma confirma o caráter imperialista de seu país. Ou seja, os valores da liberdade de expressão e do acesso à informação só valem para “os outros”, enquanto os EUA pairam imunes como ente divino para impor aos demais estes valores. Se recusam a reconhecer que se o desvelar das entranhas dos golpes em todo o mundo expõem os EUA, não é quem os desvela que foca nos EUA, mas sim os EUA que promovem o terrorismo, a guerra e os golpes em todo o mundo, obviamente por razões geopolíticas e geoeconômicas inconvenientes para os Democratas admitirem.
Os hipócritas defensores do “mundo livre”, dos “valores ocidentais”, que desejam o etnocêntrico universalismo liberal, como regra imposta por sanções e guerras para o bem de todos, se contorcem com Assange usando as armas que eles beatificam contra eles mesmos. E por isso mesmo tornou-se inadiável prendê-lo sob qualquer acusação possível.
Para justificar sua prisão no Reino Unido, forjou-se acusação na Suécia de que ele teria estuprado uma mulher. A acusação foi arquivada anos depois pela própria promotoria por falta absoluta de provas, mas principalmente porque já havia cumprido seu propósito: prender Julian Assange. Para escapar desta farsa, Assange passou sete anos cercado na Embaixada do Equador, até que a vitória da direita no país sulamericano levou à vergonhosa entrega deste perseguido à polícia britânica.
Capturado pelo Reino Unido, e com pedidos de extradição da Suécia e dos EUA, era incerto qual dos dois pedidos os britânicos atenderiam. Comprovando que se tratava de puro pretexto para capturá-lo, a Suécia retirou as acusações e o pedido de extradição, abrindo caminho para os EUA enfim agarrarem Assange. Contudo, foi preciso retê-lo na Inglaterra para cumprir pena de quatro anos de prisão por ter se abrigado na Embaixada equatoriana para evitar a detenção pela falsa acusação de estupro. Uma coisa kafkiana.
Na prisão inglesa, Assange passou mais cinco anos – bem mais que o tempo da pena imposta por um crime cuja acusação, no fim, havia sido arquivada. Seguiu preso exclusivamente a pedido dos EUA, enquanto se decidia se tinha condições de saúde para ser mandado para os Estados Unidos e se não seria executado no bárbaro país do outro lado do Atlântico.
A situação de Assange em Londres era totalmente absurda e desnudava o abandono total do discurso de liberdade de expressão, de imprensa e de ir e vir. Estava encarcerado sem qualquer pena a pagar perante a justiça britânica, e nos tribunais a defesa tornava este acinte claro como um farol. Os EUA, por sua vez, viam iminente a libertação daquele que expôs globalmente seus mais inconfessáveis atos de terrorismo internacional e ataques à democracia e às liberdades em todo o mundo.
Ontem veio a público a solução para o impasse: os EUA enfim abdicam de processar, prender e penalizar Assange, dando como suficiente o tempo que ele passou preso no Reino Unido (por acusações diversas às estadunidenses). Assange, por sua vez, assina que aceita ser considerado culpado de vazamento de informações sigilosas, mas que nenhuma pena exclusiva sobre o caso lhe será imposta. Traduzindo: Assange sai livre das acusações de espionagem, conspiração, terrorismo, etc, e sem ter cumprido um único dia de pena por crimes contra os EUA. Essa é sua vitória política. Como parte do acordo, voou para as Ilhas Marianas do Norte, protetorado estadunidense, a caminho da Austrália, onde um juiz estadunidense homologará a sentença, e de lá seguirá para seu país natal, livre e desimpedido.
O que Assange expôs ao mundo deve ser reavivado, lembrado e didaticamente utilizado sem cessar. Até mesmo sua prisão e perseguição fazem parte da exposição das vísceras do mal que representa um hegemon único no sistema interestatal, e de como os interesses deste sempre estão em contradição com os interesses dos demais Estados, especialmente os do Sul Global.