Sexta-feira, 4 de julho de 2025
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Nunca é demais lembrar que o prisioneiro político mais emblemático de nossa era segue enclausurado numa penitenciária britânica. Julian Assange não foi condenado a nada, mas segue preso, às vezes em isolamento, desde 2019, impedido de continuar seu ativismo pacifista ou simplesmente de estar com sua família. Seus dois filhos, Max e Gabriel, só “têm memórias do pai dentro do ambiente brutal da prisão de Belmarsh”, diz a mãe dos garotos e companheira de Assange, Stella Moris, que cria ambas as crianças sozinha. Enquanto aguarda o recurso contra sua extradição para os Estados Unidos (EUA), o fundador do Wikileaks deixa-nos, mesmo assim, grandes exemplos e lições para reflexão.

Assange foi perseguido pelas potências imperialistas ocidentais por revelar crimes de guerra cometidos por tropas norte-americanas e britânicas no Iraque. Seu pecado-mor foi a divulgação de um vídeo em que jornalistas da Reuters são assassinados pela aviação dos EUA, além de ferirem gravemente uma garota (que morreria a caminho do hospital). As imagens foram vazadas dos próprios sistemas de comunicação do exército norte-americano. Nelas, também podia-se ouvir o áudio da conversa entre os pilotos e os comandantes em terra que autorizaram o ataque. O tom usado naquele diálogo – ao mesmo tempo jocoso e excitado – chocou especialmente àqueles que pensam ser possível manter algum senso de humanidade durante uma guerra. Um militar chega a falar que “eles não deveriam trazer suas crianças para o campo de batalha, é culpa deles”. 

O campo de batalha era o bairro onde as crianças moravam. Lá não havia conflito algum antes da invasão ilegal, em 2003, pelos EUA (que mantiveram o vídeo em segredo, por sinal). Os jornalistas da Reuters foram dados como “desaparecidos” por anos. A agência de notícias britânica tentou, sem sucesso, descobrir o paradeiro de seus correspondentes até que Assange obteve as imagens (e sons) e revelou ao mundo não apenas o crime em si, mas também o seu encobrimento pelas autoridades norte-americanas. Ele sabia do risco que corria ao denunciar novos escândalos num conflito já marcado pelas torturas e demais cenas infames, como as da prisão de Abu Ghraib.[1]

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Quem entregou o vídeo para que Assange o mostrasse ao mundo foi Chelsea Manning, que trabalhava como analista de inteligência do Exército e vazou as fotos ao sentir um dever de consciência: ela também seria encarcerada mais de uma vez, perseguida, e até tentaria o suicídio diante da pressão para testemunhar contra Assange, algo que ela jamais aceitou fazer. Mas, caso consumada, sua morte seria outro “assassinato colateral” (nome que Assange escolheu para batizar o filme vazado) decorrente do imperialismo belicista dos EUA.[2]

Além do exemplo notável e da morte em vida de Assange na prisão e nos anos de exílio, tais fatos nos convidam a reflexões sobre sua estratégia pacifista. Uma de suas frases mais famosas sempre foi: “se as mentiras podem iniciar guerras, então a verdade pode trazer a paz”. Será que pode mesmo? A questão remonta ao chamado “Primeiro Grande Debate” da teoria de Relações Internacionais, travado no contexto do entreguerras, no início do século XX. De um lado, os idealistas liberais, como Norman Angell, acreditavam que o convencimento da opinião pública seria suficiente para forçar os governantes, ao menos nos países democráticos, a entender que a guerra era uma “Grande Ilusão” (título de seu famoso libelo pacifista, publicado em 1910, antes mesmo da I Guerra). De outro, os chamados realistas argumentavam que a guerra é inevitável e que a luta por poder é a essência da política dentro, e entre, as nações. O debate permanece até hoje.[3]

Julian Assange durante coletiva de imprensa em Londres, em agosto de 2014.
(Foto: David G. Silvers / Cancillería del Ecuador)

Pensemos num exemplo. É claro que houve escândalos que inflamaram a opinião pública e causaram impacto em guerras importantes, como a do Vietnã, quando vários presidentes dos EUA foram, sucessivamente, flagrados mentindo sobre o conflito, contribuindo para a crescente oposição àquela guerra. Mas também parece inegável que fatores materiais de poder também contribuíram decisivamente para a derrota americana: o fracasso militar diante dos vietnamitas (do Norte e do Sul), bem como a quantidade crescente de soldados americanos voltando para casa, mortos ou amputados, gerando pânico e revolta frente ao alistamento obrigatório em vigor. Ao que tudo indica, tanto idealistas quanto realistas possuem alguma razão, sendo uma tolice eleger entre ambos em vez de combiná-los.[4]

Assange nos mostra como fazê-lo. Por um lado, ele foi saudavelmente utópico por achar que o mundo poderia ser diferente e entregar-se com paixão à luta pela transparência dos governos como método em prol da paz. Por outro, ele também foi realista o suficiente para não acreditar nas mentiras dos governantes anglo-americanos, ao decidir isolar-se na embaixada equatoriana em Londres por saber que o verdadeiro processo contra si nada tinha a ver com alegações de abuso sexual na Suécia (depois abandonadas pela promotoria sueca), mas que seria levado a cabo nos EUA, após uma extradição que nenhuma autoridade confirmava, naquela altura, se existiria ou não. 

Ainda não sabemos em quais outros capítulos da História mundial o nome de Julian Assange estará gravado. Devemos nos empenhar para que sejam muitos, pressionar para que seja libertado imediatamente e jamais esquecer do que devemos a ele, mesmo que não achemos suficientes as suas estratégias políticas idealistas. Mas elas são dignas e devem ser honrosamente defendidas. Sem elas, nenhum pacifismo tampouco pode existir. Por isso, mesmo preso, ele ainda segue conosco na luta. Seu exemplo de integridade, coragem e perseverança – atributos que tanto precisamos hoje em dia – nos fazem renovar o ânimo para a luta antiimperialista e nosso senso de responsabilidade perante todos e todas que resistem mundo afora. 

Sua abnegação diante das privações, seu deboche perante as chantagens recebidas, sua raiva barbuda ao gritar quando foi levado por policiais, amarrado à sua cadeira, bem como sua teimosia em não perder o sorriso e a ternura mesmo diante das humilhações infringidas pelos maiores poderes capitalistas do planeta são patrimônios políticos da parte da humanidade que ainda acredita que vale a pena ser humano. 

A seu modo, Assange é um daqueles “imprescindíveis” de que Brecht nos falava. Botou dois impérios de joelhos e nos obrigou a lidar com a verdade, mesmo a mais abjeta. Roubou de nós a chance de cinicamente fingirmos que não sabíamos. Sua prática nos convida a pensar. Seu exemplo nos obriga a agir. Seu legado é obra viva: embora esteja preso, ele faz mais do que muitos de nós em liberdade.

(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.


Notas:
[1]  Tais episódios, a rigor, não deveriam ser chamados de ‘escândalos’, como nos lembra Cyntia Enloe, pois fazem parte da rotina, portanto da normalidade e não da excecionalidade, de ambientes militarizados e culturas militaristas. Ver o clássico: Enloe, C. (2014) Bananas, Beaches and Bases: Making Feminist Sense of International Politics. Berkeley: University of California Press. 
[2]  A próxima coluna será dedicada inteiramente a Chelsea Manning.
[3]  É o que sugere, por exemplo, um eminente realista. Ver: Mearsheimer, J. (2005) “E.H. Carr versus Idealism: the battle rages on”. International Relations 19(2): 139-152.
[4]  Esta conclusão já era óbvia para os marxistas, o que explica a facilidade com que E.H. Carr a defendeu em seu clássico Vinte Anos de Crise, disponível gratuitamente em: https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/1-1005-vinte_anos_de_crise_1919_1939 (especialmente no capítulo II).
Mentes brilhantes, porém anticomunistas, também notaram a importância desta tarefa combinativa, em vez de mutuamente excludente. Ver, a respeito, o artigo seminal de: Herz, J. (1950) “Idealist Internationalism and the Security Dilemma”. World Politics, 2(2): 157-180.