O discurso do ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, na Assembleia Geral das Nações Unidas, foi marcado pela já conhecida retórica realista da diplomacia russa. Por cerca de vinte e dois minutos, o chanceler percorreu e revisitou os grandes dramas internacionais dos últimos anos e, de forma aberta, sem fazer uso de meias palavras, apontou a participação dos Estados Unidos no quadro geral de desestabilização das relações internacionais e no aprofundamento da crise das Nações Unidas.
Vejamos alguns pontos levantados por Lavrov.
Logo no início, o chanceler relembra a Cúpula do Milênio, ocorrida em setembro de 2001, que estabeleceu como objetivo central “libertar os povos da guerra”. Apenas dois anos depois, os Estados Unidos invadiram o Iraque e, passadas duas décadas, o país ainda não se recuperou das consequências que Lavrov qualificou corretamente como “devastadoras”. O chanceler também mencionou a invasão do Afeganistão e o surgimento de fenômenos como o autoproclamado Estado Islâmico e a Frente Al-Nusra como resultados diretos das políticas intervencionistas dos Estados Unidos.
Já em 2005, a Cúpula Mundial declarou como compromisso o estabelecimento de uma paz justa, se orientando pelos próprios princípios da Carta das Nações Unidas. Mas, como afirmado por Lavrov, esse compromisso não impediu que os Estados Unidos encorajassem o então governo da Geórgia a lançar uma agressão contra a província separatista da Ossétia do Sul e das forças de paz da Rússia que lá se encontravam. Como não poderia deixar de ser, Lavrov mencionou a criminosa intervenção da OTAN na Líbia em 2011.
O chanceler afirmou que enquanto o Secretariado Geral da ONU fala em cooperação, o Ocidente está desencadeando uma verdadeira guerra de sanções contra metade do mundo. Lavrov citou o bloqueio a Cuba e ressaltou a contrariedade da comunidade de Estados à política de embargo dos Estados Unidos, o que fica evidente nas votações anuais da Assembleia Geral. A esmagadora maioria dos países votam pelo fim do bloqueio, mas ele continua em funcionamento. Além disso, Lavrov afirmou que os Estados Unidos paralisaram a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o dólar foi transformado em uma arma de guerra.
O chanceler russo condenou a punição coletiva perpetrada pelo Estado de Israel após a ofensiva do Hamas em 7 de outubro de 2022. Lavrov qualificou os atos da resistência palestina como terroristas, mas apontou que civis palestinos estão morrendo por armas dos Estados Unidos e que estes últimos estão envolvidos nos mais recentes ataques com métodos terroristas ao Líbano.
Lavrov também qualificou como atos terroristas a sabotagem dos gasodutos Nord Stream. Mais uma vez, os Estados Unidos não ficaram de fora e o chanceler apontou o envolvimento dos norte-americanos nas explosões que atingiram uma infraestrutura partilhada pela Rússia e a Alemanha. Lavrov fez menção ao alargamento da OTAN que, de acordo com ele, ocorre há três décadas. E essa expansão não tem se dado apenas em direção às fronteiras da Rússia, mas também tem criando posições na Ásia Central e na região da Ásia-Pacífico com vistas a conter a China.
Em meio à analise de que os Estados Unidos estão metidos até o pescoço nos principais focos de tensão do mundo, o discurso de Lavrov não se ateve a pedir apenas a reforma das Nações Unidas ou defender a inclusão de membros do Sul Global em seu Conselho de Segurança. O chanceler russo denunciou as práticas utilizadas pelos países ocidentais, isto é, dos Estados Unidos e seus aliados, para instrumentalizar a organização e, a depender dos interesses do momento, jogar para baixo do tapete os princípios estabelecidos em sua carta de fundação.
Os Estados Unidos e seus aliados, por exemplo, estão desde fevereiro de 2022 defendendo a integridade territorial da Ucrânia e exigem que a Rússia se retire dos territórios que conquistou desde o início da guerra. Mas, como nos lembra Lavrov, esses mesmos países se esqueceram do primeiro capítulo da carta, artigo 2, onde é possível ler:
“Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal”
De fato, os que hoje apoiam a Ucrânia não mencionam o desejo dos povos da região do Donbass em não pertencer a um país que implementou uma série de medidas contra os russos étnicos, como a proibição do idioma russo em todas as esferas estatais. E muito menos mencionam que, antes de entrar em guerra com a Rússia, a Ucrânia bombardeou por oito anos a região do Donbass e matou mais de 15 mil pessoas.
As críticas de Lavrov colocam o dedo na ferida e deixam evidente uma realidade que a cada dia mais nos salta aos olhos: a ONU passou a ser instrumentalizada pelo Ocidente para reafirmar sua visão de mundo divisionista e violar a soberania dos países mais fracos. Contra aqueles que ousam resistir à imposição de regras tão desconfiáveis e quando a intervenção direta contra estes não é possível, as armas são sanções, embargo e cerco, além de uma propaganda política incessante com o objetivo de isolar seus adversários nos espaços internacionais de discussão.
O discurso de Lavrov também nos remete à falácia, ainda defendida por teóricos e analistas, de que os Estados Unidos são um poder estabilizador do sistema. Se isso não foi uma verdade nem mesmo no auge de sua hegemonia no mundo unipolarizado dos anos 1990, agora é muito menos. Ao fornecer ajuda financeira e material para a Ucrânia, Israel e Taiwan, os Estados Unidos não estão apenas sofrendo o ônus de correr em auxílio de seus aliados. Em alguns casos, como na Ucrânia, estão apenas administrando problemas que foram criados pelos próprios norte-americanos.
Portanto, quando Lavrov traça uma espécie de linha do tempo e insere a participação dos Estados Unidos nos grandes problemas da nossa época, desde o auxílio prestado a Israel e seus crimes de guerra até a imposição de sanções a metade do mundo, ele está chamando a atenção para o comportamento absolutamente nocivo do país que muitos acreditam defender um sistema de nações estável, em que a cooperação entre os Estados é a regra e não a exceção.
Ou que ainda acreditam que a paz e a estabilidade no sistema internacional podem ser alcançadas a partir dos “bens públicos” fornecidos pelos norte-americanos, como a moeda internacional, a coordenação das políticas econômicas, o bom funcionamento da economia internacional e o sistema de controle de armas nucleares. Os “bens públicos” estabilizadores são, na verdade, os instrumentos de pressão da hegemonia norte-americana inaugurada no pós-Segunda Guerra, no seu hiperpoder dos anos 1990 e na estratégia imperial do início do século.
Agora, enfrentando uma crise de liderança e tendo que lidar com o renascimento da Rússia e a consolidação da ascensão chinesa, os Estados Unidos tornaram as suas políticas ainda mais agressivas e passaram a ter muitas dificuldades em sustentar a retórica de poder estabilizador do sistema internacional. Nesse sentido, o caráter pedagógico do discurso de Lavrov está em dizer, de forma absolutamente clara, que os Estados Unidos são criadores das próprias crises que dizem gerenciar e combater e que as Nações Unidas se converteram em um instrumento de suas práticas intervencionistas.
(*) Rose Martins é analista internacional e pesquisadora, formada em Relações internacionais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e mestra em Economia Política Internacional