Hoje, todos louvam o Fiat Uno. As redes sociais estão aí para cantar sua honra e glória. O Fiat Uno que atravessou a enchente enquanto a Renegade engasgava; o Fiat Uno que subiu a ladeira enlameada que fez a Hilux escorregar. Testemunhei até, num reels da vida, um Fiat Uno evitando um atropelamento mortal. A legenda era clara: Fiat Uno salva pedestre.
A volta do Fiat Uno ao imaginário social é uma vitória contra os nossos tempos de “coachismo” (lê-se “coutismo”). O Fiat Uno hoje é a única figura pública capaz de enfrentar os clones de Pablo Marçal que atormentam nossa vida. O Uno escancara a masculinidade tóxica dos portadores de SUV. O Uno destrói o fetichismo da Inteligência Artificial como panaceia para todos os males. O velho Uno (não o novo) voltou para nos redimir.
O Uno, no entanto, mais do que sinais de resiliência, pode nos dar aulas de economia política. Vamos lá.

O Fiat Uno foi lançado em 1984 no Brasil, num mercado dominado pela montadora Volkswagen. Chegou discretamente, substituindo os Fiat 147 C e suas variantes, como o sedan Oggi, que deu lugar ao Prêmio, que, como o Uno, teve motores 1.3, 1.4, 1.5 e 1.6 durante sua história.
O Fiat Uno era só mais um concorrente no mercado, que tinha de lutar contra a má fama do seu antecessor e contra a força da fabricante do Gol que, de quebra, ainda fabricava o também lendário Fusca. Neste mundo, carro de luxo era o Monza GLS, que deixou saudades, mas que hoje nem seria fabricado.
Em meio a tudo isso, a hiperinflação seguiu desorganizando o mercado de automóveis no Brasil.
Durante o governo José Sarney (1985-1990), havia ainda uma pequena montadora nacional, a Gurgel, que usava motores da Volkswagen e produzia carros quase jipes, ou jipes quase carros. Essa montadora chegou com um projeto ousado: um carro de 800 cm3 de cilindrada, o BR-800 (depois, Supermini), que consumiria menos combustível, seria bastante compacto e que só precisava de um empurrão para se viabilizar: uma política tributária que favorecesse seu segmento, em que correria sozinho.
Incentivo fiscal para carros com motores pequenos
A ideia não era ruim. Um incentivo direcionado poderia criar uma nova empresa robusta, capaz de desenvolver internamente alguma tecnologia e suprir um mercado de carros mais baratos ainda não explorado no país. Aos trancos e barrancos, a Gurgel conseguiu suas isenções fiscais e partiu para o ousado projeto de tentar recuperar alguma presença da burguesia nacional na produção automotiva.
Mas tivemos as eleições presidenciais de 1989. E o vencedor foi Fernando Collor de Mello. Collor queria abrir o mercado brasileiro para tudo que fosse estrangeiro, até mesmo para veículos produzidos no Leste Europeu. Os Lada soviéticos chegaram ao país com charme, mas a fama deles foi muito pior do que a conquistada, atualmente, pelos Peugeots…
Collor, antes de tomar posse, fez uma viagem à Itália em que não faltaram passeios de Ferraris, empresa já ligada à Fiat à época, e, espera-se, massa de primeira qualidade. Quando voltou, veio com uma novidade para o setor de carros: ampliar a faixa de carros com isenções de IPI, incorporando veículos 1.0.
Naquele momento, nenhuma montadora fabricava carros com motor 1.0 no país. Mas havia uma que, sim, podia fazê-lo a qualquer momento: justamente a italiana Fiat, que usava o motor na Europa e já fabricava uma quantidade significativa de Fiats Uno em Betim, em Minas Gerais.
Uno versus Supermini, da Gurgel
O primeiro rival do Fiat Uno, portanto, não foi uma Hilux, mas o simpático Supermini da Gurgel, fabricado entre 1992 e 1995, que praticamente morreu antes de entrar no ringue. Até hoje alguns circulam por aí, mas o último sonho de autonomia no setor de carros do país foi destruído com uma canetada collorida direcionada.
A partir daí, a Fiat passa a crescer como nunca no país. O carro mil, o Uno Mille e depois apenas Mille, ganhou corações e mentes num país em que a economia popular estava tentando se recuperar. Quando Itamar Franco assume a presidência, após o impeachment de Collor, em 1992, ele tenta reavivar a produção de Fuscas como símbolo de uma retomada automobilística.
Alguns fanáticos compraram o veículo, mas a linha de produção do velho modelo da Volks não durou muito, atropelada pelo sucesso da Fiat, com um carro mais moderno, de design mais arrojado e – como sabemos hoje, mas não era uma certeza na época –, tão resistente quanto ou mais. O Fusca foi a segunda vítima do Fiat Uno.
A partir daí, o Fiat Uno, em todas as suas versões (1.0, 1.3, 1.5, e variantes) vai se tornando o veículo dominante no país. A Fiat torna-se a maior montadora e entra nos anos 2000 com dois carros “populares”: o Uno e o Palio. Aos poucos, as isenções fiscais foram se ampliando e deixando de ser dirigidas a carros populares.
Os Unos, que como outros carros nacionais foram adaptados à tecnologia Flex (rodando com etanol e gasolina), significaram um modelo de fortalecimento da indústria automobilística no país. Se seu sucesso enterrou o projeto nacional da Gurgel, ele pelo menos significou a reabilitação de todo um setor industrial que segurou as pontas da economia brasileira até os anos 2010.
Esta são as lições práticas de economia do Uno: a disputa por projetos de desenvolvimento (capital nacional ou estrangeiro?), a importância da política industrial promovida pelo Estado (isenção de impostos direcionada), a pressão das megacorporações por isenções crescentes que, ao fim e ao cabo, fazem a própria indústria como um todo perder o sentido.
Mas quais as lições simbólicas dos vencedores Fiats Uno das redes sociais?
A simplicidade do Fiat Uno
A primeira, mais óbvia, é que a simplicidade pode ser uma força, e não uma fraqueza. O Uno vence as enchentes não com a tecnologia, mas com sua estrutura “enxuta”, com o conforto mínimo necessário e uma interação analógica, sem depender de circuitos digitais, com o motorista.
A segunda, menos óbvia, é que o Fiat Uno não se rende diante dos primeiros obstáculos. Enfrenta os problemas assim como enfrenta as situações normais. A economia tem de ser pensada, como foi o Uno, não só para os tempos de bonança, mas também para os de tempestade. Se a Hilux escorrega no barro e o Uno não, temos a velha máxima, operando ao máximo, de que tamanho não é documento. Assim pode ser também a economia brasileira: não precisamos estar, neste momento, na ponta de disputa tecnológica, mas podemos olhar para trás e encontrar os caminhos em que as Renegades não passam.
Finalmente, o Uno tem uma lição de solidariedade: quem tem um Uno sabe que a carona que você dá, mesmo sem ar condicionado, faz toda a diferença na vida de quem a recebe. Pode significar chegar no emprego na hora, não perder a primeira aula…
O Uno é, hoje, o carro do povo e da economia popular. Dizem até que os Unos com escada (dessas para subir em postes, de trabalho, portanto) são mais poderosos.
A Faria Lima não admite o Fiat Uno. Se você tem um e passou por lá, duvido que não se lembre de um buzinaço inconveniente de um operador do mercado financeiro montado num carrão importado de roda larga. E, se já passou por isso, tenho certeza de que também não se intimidou e seguiu adiante, como se não tivesse acontecido.
Se uma enchente não segura o velho Fiat Uno, não será a Faria Lima que vai segurá-lo.