Quarta-feira, 26 de março de 2025
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Depois de meses sem publicar minhas colunas no OM, primeiro por dedicação à campanha eleitoral municipal, depois pela necessidade de refletir sobre a acachapante derrota da esquerda, e finalmente por algumas semanas de cansaço e uma revigorante viagem ao México, senti muita dificuldade de retomá-las.  

As transformações e reviravoltas na política nacional e internacional se sucederam em tal ritmo que qualquer tema parecia ultrapassado já no dia seguinte.

Foi um post do publisher deste OM que me indicou uma constante pela qual vale a pena retornar, especialmente nestes dias em que a maioria dos comentaristas afirma que tudo mudou radicalmente no planeta. 

Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante entrevista para a Rádio Tupi FM, do Rio de Janeiro. Palácio da Alvorada, Brasília - DF. (Foto: Ricardo Stuckert / PR)
Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante entrevista para a Rádio Tupi FM, do Rio de Janeiro. Palácio da Alvorada, Brasília – DF.
(Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Para ele, a esquerda estaria dividida entre dois campos produtores de multiversos: o dos que tudo criticam em Lula e o dos que tudo aceitam, porque “ele sabe o que faz”. Creio que a leitura está essencialmente correta, embora corra o risco de ser lida como uma falsa simetria. 

Certamente acreditar que “Lula nunca erra” e que “ele sabe o que faz”, embora em certos momentos não sejamos capazes de atinar com o sentido de algumas ações, não deixa de ser uma versão profana do Deus que escreve certo por linhas tortas e cujos desígnios são insondáveis. 

Evidente que Lula não é infalível e que já cometeu muitos erros na vida, como estão aí Joaquim Barbosa e Luiz Fux, entre tantos outros, para testemunhar.

Essa postura é basicamente desmobilizadora. Tanto da capacidade crítica e do esforço necessário para, aqui da planície e com consciência da precariedade das informações de que dispomos sobre o jogo cruento do poder, avaliar o que nos passa como sociedade, quanto de nossas capacidade de incidir, no limite das ações sociais à disposição de cada um, na luta política no âmbito da outrora chamada sociedade civil. 

Por outro lado, a insistência narcísica em expressar frustração porque Lula não implementa em seu governo os nossos desejos, o “nosso programa” pessoal, não é apenas sintoma inequívoco de uma curiosa síndrome de projeção freudiana, mas, sobretudo, um serviço prestado à extrema-direita. 

“Análise simplista!”, protestarão alguns acadêmicos bem pensantes e outros nem tanto. Mas discordaremos que a extrema-direita brasileira nunca esteve, de 2015 para cá, tão espremida no canto do ringue? 

Sua principal liderança está inelegível e corre o risco de condenação penal com mais duas dezenas de militares de alta patente e baixo QI; seus herdeiros putativos digladiam-se ante as dúvidas do espólio; militares e congresso (assim com minúsculas) disputam o fundo do poço da confiança da população. 

E a que tem dedicado boa parte do chamado campo de esquerda? 

A chamar Lula e Haddad de “neoliberais” ou, como o fez recentemente um expoente da educação brasileira, a lançar a consigna de “derrubar o arcabouço fiscal, já”. Supõe-se que afastados os neoliberais Lula e Haddad o que virá será um governo revolucionário?

Já foi obscurecido pelo “debate” do Oscar, mas o que foi aquela famigerada carta do Kakay? (Calma, kakaysistas: o “famigerada” vai no sentido de Guimarães Rosa).

O “Lula não atende ninguém”, já foi devidamente traduzido pelo tio Rey: resta apenas saber quem é, ou são, os anonimamente representados pelo aparentemente saudoso de seus tempos de poderoso insider .

Mas verdadeiramente espantoso foi o “está isolado” e “não faz política”! 

O Supremo está para decidir na primeira turma (com previsão de 5×0) pelo indiciamento penal do genocida e mais duas dezenas de oficiais militares de alta patente. Mas Lula não faz política! Alguém acha que isso está ocorrendo porque nossas instituições, e em particular o STF, têm um compromisso sólido e nunca vacilaram em relação à defesa da democracia?  

O candidato derrotado a vice-presidente e general de quatro estrelas está preso há oitenta dias, sem rebelião ostensiva dos militares e os nossos spidermen preferem reclamar da debilidade de Lula com Múcio, esse “porta-voz dos militares golpistas”!

A futura primeira mulher a presidir o Superior Tribunal Militar afirma publicamente que os crimes de que Bolsonaro e os demais militares são acusados devem ser julgados pela Justiça Civil, aproveita para dar um cala a boca no novel presidente da Câmara que ameaçou botar as garras de fora e tomou lambadas, mas Lula não faz política! Isso ocorre porque a Justiça Militar sempre foi legalista e comprometida com a democracia, certo?

Alguém se dedicou a medir a intensidade comparada das críticas à misoginia de Lula na substituição de “mais uma mulher no Ministério trocada por um homem branco e velho” com as defesas da turma “de esquerda” frente ao festival de desqualificações sofrido por Gleisi Hoffman após sua indicação ao mesmo ministério?

Já se indicou que para a imprensa corporativa, Gleisi não é mulher, é petista. Pena que parece ser assim também para o tal do “nosso campo”.

PS: Com uma rápida viagem ao Uruguai, Lula articulou, com Colômbia, Chile e Bolívia, o apoio ao Suriname para a presidência da OEA, a ponto do candidato apoiado por Trump ter desistido da candidatura. Já pensaram se ele fizesse política?

Nosso publisher tem razão. Haja multiverso!

(*) Carlos Ferreira Martins é Professor Titular aposentado do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP S. Carlos.