No dia das eleições na Venezuela o governo de Javier Milei protagonizou um lamentável espetáculo de desinformação, violência política e interferência nos assuntos de outro país, com o incentivo ao cerco, por populares, da embaixada da Venezuela em Buenos Aires. Não satisfeito, o governo do presidente que se aconselha com o espírito de um cachorro aderiu a uma frente intervencionista, formada pela Argentina, Chile, Costa Rica, Panamá, Peru, República Dominicana e Uruguai, que apresentaram à Organização dos Estados Americanos (OEA) uma solicitação de reunião extraordinária com o intuito de organizar o questionamento da Organização às eleições ocorridas no país bolivariano.
Que a OEA faça declarações intervencionistas contra o processo eleitoral da Venezuela não chega a ser uma novidade. Criado pelos Estados Unidos, o “sistema interamericano” sempre desempenhou um papel de validação da política estadunidense para o continente. Ainda que com momentos de intenso questionamento e luta interna – como no caso da suspensão de Cuba do sistema, episódio marcado por debates acalorados sobre não-intervenção e autodeterminação –, o saldo histórico da OEA é de encaminhamento das vontades emanadas do Departamento de Estado dos EUA.
Porém a Argentina, grande nação sul-americana, sempre propugnou, em seus diversos governos desde sua unificação, pela independência política e pela autonomia das nações do continente. A ideia radical de não-interferência e de proibição do uso da força contra os países do continente americano nasceu justamente de um político argentino, Luís María Drago. Então ministro de Relações Exteriores da Argentina, ele enviou aos EUA, no ano de 1902, um memorando em que protestava quanto à tolerância dos EUA aos ataques e ao bloqueio naval promovidos contra a Venezuela por Grã-Bretanha, Alemanha e Itália, em razão de dívidas daquele país com estes.
Durante os anos de formação do “sistema interamericano”, que data de 1898, evoluindo lentamente até a formação da OEA no pós-Segunda Guerra (mais precisamente em 1948), a Argentina foi o país latino-americano que menos cooperou com o sistema. Por longo período recusou-se também a participar das conferências. A posição tradicional da Argentina na primeira metade do século XX baseava-se em um rechaço da essência isolacionista da “ideia de Hemisfério Ocidental” (Connel-Smith, 1982). Geograficamente afastada de Washington, seus interesses econômicos e a cultura de suas classes dominantes estavam mais ligadas à Europa. Dessa forma, a Argentina foi sempre o principal expoente da ideia de ter fortes ligações extracontinentais para limitar o poder e a influência dos Estados Unidos. Essa posição refletiu-se na radicalidade com que apegou-se à neutralidade na Segunda Guerra mundial. Constrangida a aderir ao bloco que derrotara o “Eixo” em 1945, a Argentina aderiu ao sistema da ONU com certo atraso em relação ao Brasil e outros vizinhos sul-americanos. Aderiu também e à OEA, em 1948, onde, juntamente com o México, destacou-se pela defesa dos princípios de não-intervenção e autodeterminação, temas que voltariam ao debate na Organização em muitos momentos, em especial quando da interferência direta dos EUA nas nações latino-americanas.
De fato, no pós-guerra, durante a época de Perón, a Argentina aspirava adotar uma “terceira posição” entre os EUA e a URSS, porém falhou em construir um bloco duradouro. Depois da queda de Perón em 1955, o presidente Frondizi promoveu uma aproximação com os EUA, outorgando concessões sem precedentes aos interesses petroleiros deste último país. Não obstante, a Argentina não apoiou a posição dos EUA contra Cuba em Punta del Este, fator importante dentre os que causaram a remoção de Frondizi por um golpe militar, pouco depois. O novo governo argentino, ainda que anticomunista e, portanto, apoiador das políticas estadunidenses para Cuba, ao mesmo tempo anulou os contratos petroleiros firmados na gestão presidencial de Frondizi. O governo militar que chegou ao poder em 1966 mostrou-se ainda mais “duro” quanto à questão cubana e apegou-se com mais afinco ao reforço do sistema interamericano no quesito segurança. No entanto, nunca entregou uma cooperação realmente estreita com os EUA no seio do sistema interamericano, situação que se repetiu em toda a segunda metade do século XX, em todos os governos, até mesmo durante Menem, governo que dizia que promoveria “relaciones carnales” com os EUA. A aproximação deu-se na economia, com a adesão à agenda neoliberal e com a desastrosa dolarização. Porém nunca na esfera das políticas da OEA para o continente.
O que faz Milei é sem precedentes na história argentina. Por certo as digitais de Macri nas agitações golpistas ocorridas na Bolívia (refiro-me ao episódio que derrubou Evo Morales) mostram que a deterioração política da direita argentina já estava em curso. Mas nada se compara ao circo encenado ao redor da embaixada da Venezuela, temperado pelas postagens da ministra de Relações Exteriores, Diana Mondino, que apontava “resultados” das eleições venezuelanas favoráveis ao candidato de Maria Corina Machado, ainda antes das apurações serem finalizadas (quando ninguém teria acesso aos números) e coroado pela “caravana” intervencionista dirigida à OEA. Milei (e todos os que o cercam) parece mesmo determinado a reduzir todas as instituições argentinas a frangalhos, até mesmo naquilo que as próprias forças políticas mais conservadoras valorizavam num passado não muito distante, que era a relativa estabilidade do país em suas relações exteriores, marcadamente independente (ainda que com nuances) e apegada a princípios.
(*) Rita Coitinho é socióloga e doutora em Geografia, autora do livro “Entre Duas Américas – EUA ou América Latina?”, especialista em assuntos da integração latino-americana.