Duas afirmativas têm circulado no campo progressista desde que um conjunto de militares ocupou o Planalto durante o governo Bolsonaro e protagonizou a intentona do dia 8 de janeiro de 2023. Ambas são parciais, incorretas, e por isso serão examinadas aqui. A primeira afirma que militares nunca foram punidos, e que o julgamento dos crimes cometidos no dia 8 deverá acabar em pizza, como quase tudo no Brasil. A segunda defende que episódios como esses só existem porque os militares que cometeram crimes durante a ditadura não foram punidos, pelo contrário, foram anistiados.
Rio de Janeiro, 1968. Um calor dos diabos, como de praxe. Como produzir fatos capazes de validar, aos olhos da opinião pública, o expurgo violento dos críticos da ditadura e favorecer o fechamento do regime? Realizar atentados terroristas e atribuí-los à oposição de esquerda o que, no meio militar, é apelidado de operação de bandeira falsa. Além do clichê bombas em bancos e na embaixada dos Estados Unidos, o brigadeiro Burnier, personagem central na ditadura brasileira, teve uma macabra ideia. Por que não explodir o Gasômetro de São Cristóvão, um complexo de reservatórios de gás que abastece o Rio de Janeiro? O tom é acentuado pelo horário proposto: hora do rush. Localizado ao lado de um terminal de ônibus, um atentado dessa natureza causaria, no mínimo, 10 mil mortos.
Um capitão disse não, desobedeceu a ordem dos seus superiores. Estevam Silva recordou no Opera Mundi a história de “Sérgio Macaco”, o paraquedista da Força Aérea Brasileira que denunciou aos seus superiores o convite indecoroso que os paraquedistas receberam. Sergio reagiu com incredulidade: “Acho que os senhores não estão falando a sério”. Embora fosse carioca, o militar apreendeu bem o ditado mineiro: “Cautela e canja de galinha nunca fizeram mal a ninguém”.
Sergio sobreviveu ao pente fino de 1964, ou seja, não era um oficial identificado como comunista, ou um agitador. Era um militar de carreira. No inquérito aberto em função da sua denúncia, 37 militares, entre 41 pessoas, confirmaram seu depoimento, mas Burnier não foi condenado. Sérgio, ao contrário, foi condenado a 25 dias de prisão por insubordinação, junto com seus colegas que também denunciaram o superior. Morreu sem ter sua patente restabelecida. Outras histórias como a de Sergio foram lembradas por Silvio Tendler no documentário de 2014 Militares da democracia – Os militares que disseram não“.
Desde a intentona integralista em 1938, as tentativas de golpe vindas da extrema direita militar foram anistiadas e esses foram reintegrados às fileiras, com destaque para as revoltas de Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959), cujos oficiais participariam do golpe de 1964. Nesses casos, a impunidade foi a regra (Cunha, 2019).

Criou-se um lugar comum de que, caso os militares fossem punidos, não teríamos vivenciado o governo Bolsonaro e a intentona do dia 8 de janeiro de 2023
No caso da esquerda, especialmente a militar, na maioria das vezes, não ocorreu a anistia. Militares perseguidos durante a ditadura, somados às polícias e aos bombeiros, são o grupo proporcionalmente mais afetado, em torno de 7.500 pessoas, pelas punições: “A taxa de punições políticas no Brasil pós-1964 foi proporcionalmente mais alta na área militar” (Figueiredo, apud Machado, 2006, p.81).
Todas as patentes foram atingidas. Ao menos 37 foram mortos, sem contar policiais, no pós-golpe de 1964. Casas foram incendiadas e portarias secretas impediram que exercessem suas profissões de maneira civil, pilotando ou na Marinha Mercante, por exemplo: “Os expurgos nas FFAA durante o primeiro ano [pós-golpe] tiveram dupla função: eliminar todo o pessoal militar que estivera estreitamente associado ao governo anterior e estabelecer a predominância da ESG e da extrema direita. Foi necessário eliminar militares democratas e nacionalistas que poderiam se opor às políticas de intensificação da repressão declarada e de favorecimento às corporações multinacionais” (Alves, Maria Helena Moreira, 2005, p.78).
Em suma, a tarefa número 1 pós-golpe de 1964 foi limpar a casa, que não sobrasse um fiapo reformista: “A pequena incidência de processos atingindo militares nos anos posteriores parece significar que, nesse campo, a cirurgia foi encetada com êxito” (Relatório Brasil Nunca Mais, Perfil dos Atingidos, 1987, p.120).
Não é verdade, portanto, que militares brasileiros não sejam cobrados, ou que a justiça militar não seja dura. Punições abundam. Entretanto, como na justiça comum, são seletivas ideológica e hierarquicamente. À luz desses fatos históricos, é impositivo refletir sobre a necessidade de punir os torturadores do regime de 1964.
Criou-se um lugar comum de que, caso punidos, não teríamos vivenciado o governo Bolsonaro, a intentona do dia 8 de janeiro de 2023, ou até mesmo a violência policial em comunidades populares. Se, por um lado, a impunidade dos crimes cometidos durante a ditadura militar faz parte da triste tradição da pizza em casos de insubordinações à direita, por outro lado, países que puniram militares torturadores têm observado o retorno do extremismo de direita, inclusive nos quartéis.
Em resumo, a fragilidade da justiça de transição no Brasil, onde se destaca a Comissão Nacional da Verdade, não é razão para o protagonismo militar na política que tem-se observado. Punir torturadores contribui para a democracia, mas não é condição suficiente para estabelecer o controle sobre as forças armadas, ou para evitar novas aventuras militares. Responsabilizar a ex-presidenta Dilma Rousseff por romper os laços da esquerda com os quartéis em função da criação da Comissão Nacional da Verdade é uma covardia, que busca expirar a incapacidade de mudar as coisas através da responsabilização de outros.
Mudar as características da caserna exige abri-la aos influxos da sociedade. Nesse caso, voltando aos ditados populares, é preciso ter estratégia e paciência: “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”.
(*) Ana Penido é pós-doutoranda em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.