Quarta-feira, 14 de maio de 2025
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Desde 1990, traindo o país, Alberto Fujimori colocou em prática o lado mais brutal do receituário neoliberal como solução para os problemas herdados das “democracias” anteriores no Peru. Desde então, a privatização, a perversão do papel do Estado, a abertura sem limites, a judicialização da política e do sindicalismo de esquerda, etc., consolidaram a primazia do “livre mercado” que, entre outras coisas, liquidou qualquer possibilidade de desenvolvimento com redistribuição no país.

Ao mesmo tempo, o neoliberalismo gerava corrupção de forma exponencial e a transformava no modus operandi da gestão pública e do “funcionamento” da “democracia” que se gabava de ter dado ao país dez presidentes (dois deles com reeleição imediata) em vez de seis. Algo inimaginável em uma democracia com certa maturidade cívica. Depois veio a tragédia.

A ex-primeira-dama do Peru, Nadine Heredia, ao lado do ex-presidente Ollanta Humala. <br> (Foto: Simone D. McCourtie / World Bank)
A ex-primeira-dama do Peru, Nadine Heredia, ao lado do ex-presidente Ollanta Humala.
(Foto: Simone D. McCourtie / World Bank)

Dos dez presidentes: quatro cumpriram/cumprem pena em uma prisão exclusiva (Alberto Fujimori, Alejandro Toledo, Ollanta Humala e Pedro Castillo); um, Alan García, optou pelo suicídio diante da iminência de ser preso. Todos eles acusados de lavagem de dinheiro, tráfico de influência e violação dos direitos humanos; três têm processos judiciais em andamento (Pedro Pablo Kuczynski, Martín Vizcarra e Dina Boluarte), acusados de lavagem de dinheiro, enriquecimento ilícito e violação dos direitos humanos. E Francisco Sagasti, que substituiu o efêmero Manuel Merino, enfrenta um julgamento por “abuso de autoridade” que não há como provar.

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Cinco dos ex-presidentes mencionados receberam propinas da empresa brasileira Odebrecht e, de forma particular, a Sra. Nadine Heredia, esposa do ex-presidente Ollanta Humala, cujo asilo diplomático motiva a presente nota. Nada é casual na política e, muito menos, naquela temperada pela corrupção.

Nadine Heredia: fuga com asilo

Nadine Heredia deveria estar cumprindo pena de 15 anos de prisão junto com seu marido, Ollanta Humala. Mas, graças à Embaixada do Brasil em Lima e ao advogado Marco Aurelio Carvalho, ela fugiu para São Paulo como “perseguida política” em um avião da Força Aérea Brasileira, supostamente amparada pela Convenção sobre Asilo Diplomático de 1954. Para tal, foi fundamental a “assessoria jurídica ligada ao círculo próximo de Lula da Silva”.

Vejamos. A convenção referida diz em seu Art. I: o asilo diplomático é “concedido […] a pessoas perseguidas por motivos ou crimes políticos […]” devidamente comprovados; e, em seu Art. III, estabelece claramente que “Não é lícito conceder asilo a pessoas que, no momento do pedido, se encontrem acusadas ou processadas perante tribunais ordinários competentes […]”. O texto não deixa margem para dúvidas e não é aplicável a Nadine Heredia, salvo com uma interpretação distorcida.

Nenhuma das circunstâncias previstas na Convenção (perseguição política ou razões humanitárias) estava ocorrendo quando foi concedido o “Asilo diplomático” e, portanto, não havia motivo para a rapidez com que o asilo foi processado, bem como para os privilégios concedidos pelo chanceler Mauro Vieira. Os fatos geram interrogantes que não fazem bem ao prestígio do Itamaraty.

A que se deve tanta pressa e diligência no caso de Nadine Heredia? Segundo Vieira, foi uma “decisão coordenada” no mais alto nível dos governos do Peru e do Brasil, ou seja, entre Lula e Boluarte, acusada de crimes contra a humanidade. Não é a primeira vez que a ex-primeira-dama recebe “favores” e “tratamentos excepcionais” do governo brasileiro. Enquanto era investigada por corrupção (2016), graças aos bons ofícios de José Graziano da Silva, ex-diretor-geral da FAO, Nadine Heredia foi nomeada diretora de coordenação para alimentação e agricultura da FAO com sede em Genebra. Naquela ocasião, o Peru protestou formalmente e considerou o ato como intervencionismo em assuntos internos.

Segundo o site Hildebrandt en sus trece (20.04.25), os favores político-diplomáticos concedidos desta vez a Nadine Heredia estariam associados ao financiamento da campanha presidencial de Ollanta Humala em 2011 que, segundo Marcelo Odebrecht, teria recebido “três milhões de dólares conforme as instruções de Antonio Palocci Filho, membro do PT, que agia em nome do presidente Luiz Inácio Lula da Silva”.

O casal Humala-Heredia não declarou essas contribuições e, segundo a lei peruana, elas constituem crimes de lavagem de dinheiro, pelo que, segundo o procurador Germán Juárez Atoche, “Lula está comprometido nesta situação” por ter concedido asilo político a Nadine Heredia. Um grave registro judicial que mancha a diplomacia brasileira e a própria imagem do presidente Lula.

Nadine Heredia não era apenas “esposa do presidente Humala”, mas também presidente do Partido Nacionalista Peruano, fundado por ela e seu marido em 2005, pelo que não há dúvida de que seu papel no governo era de protagonista e que podia tomar decisões de Estado com o conhecimento, consentimento e cumplicidade do marido. Não é gratuita a descoberta de uma conhecida pesquisadora de 2013 que colocava Nadine Heredia como a terceira pessoa mais poderosa do país. E, segundo Michael McKinley, embaixador do Peru nos EUA na época, “Nadine era o cérebro político radical por trás de Humala”.

Reações

Deputados e senadores do Parlamento brasileiro apresentaram cerca de 20 iniciativas pedindo investigação e explicação sobre o “asilo diplomático” concedido a Nadine Heredia. Entre elas, destacam-se as apresentadas pelos deputados Marcel Van Hatten, Ubiratan Antunes Sanderson, Evair Vieira de Melo e Filippe Barros, solicitando à Procuradoria-Geral da República (PGR), ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas da União que investiguem a “legalidade”, bem como o uso de recursos públicos exigidos pelo referido asilo. “É necessário verificar os fundamentos jurídicos e as circunstâncias” para evitar que “o Brasil seja considerado refúgio de indivíduos condenados por práticas ilícitas graves […] ligados a escândalos de corrupção […] com conexão direta com fatos criminosos ocorridos”, afirmam os parlamentares.

Outros parlamentares apontam que “chama a atenção a rapidez com que foram tramados os documentos” para formalizar o asilo “graças à intervenção direta do Ministério das Relações Exteriores”, por meio de seu embaixador em Lima, Clemente de Lima Baena Soares, e à intervenção “profissional” do advogado Marco Aurélio Carvalho. 24 horas foram suficientes para uma gestão que geralmente leva semanas, quando não meses.

Jair Bolsonaro, capitalizando politicamente a situação, diz que o asilo “envergonha nosso povo e atenta contra a dignidade nacional”. O Convênio de 1954 foi desvirtuado ao ser concedido a uma “corrupta”, com o que “a imagem do Brasil está sendo destruída”. Mesmo que a motivação de Bolsonaro seja evidente, o que ele expressa não deixa de ser digno de atenção.

Com o alvoroço internacional causado pela suspeita decisão de conceder asilo diplomático a quem não o merecia, a Comissão de Relações Exteriores do Senado tem todos os motivos para exigir explicações do ministro Mauro Vieira sobre os fundamentos legais do asilo concedido, bem como o uso de um avião da Força Aérea Brasileira cuja operação teria exigido um orçamento superior a 50 mil dólares.

Políticos do Brasil e do Peru, de direita e de esquerda, concordam com a narrativa que atribui ao Brasil a condição de exportador de corrupção com o caso sul-americano da Odebrecht e, com o caso de Nadine Heredia, estaria se configurando uma espécie de “exportação de impunidade” ao conceder-lhe asilo político quando não lhe era devido.

(*) Nilo Meza é economista e cientista político peruano.