Recentemente o Governo Federal anunciou o maior Plano Safra da história, cerca de 400,59 bilhões de reais destinados a apoiar a produção agrícola do Brasil, por meio do fornecimento de crédito acessível, um aumento de 10% em relação ao programa anterior. Os produtores rurais podem contar ainda com mais 108 bilhões em recursos de Letras de Crédito do Agronegócio (LCA), para emissões de Cédulas do Produto Rural (CPR), que são incentivos complementares. No total, são 508,59 bilhões para o desenvolvimento do agro nacional. O valor do Plano Safra da Agricultura Familiar 2024/2025 também é o maior da história, mas seu valor é muito mais modesto do que o do outro, de 76 bilhões, ainda que, de acordo com o Censo Agropecuário de 2017, aproximadamente 77% dos estabelecimentos agropecuários sejam classificados como de Agricultura Familiar, sendo eles empregadores de cerca de 10,1 milhões de pessoas, ou 67% da mão de obra dos estabelecimentos rurais.
Ao mesmo passo, no último mês o Brasil acompanhou de modo agonizante incêndios e queimadas por todo o país, mas principalmente biomas como a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal foram os mais afetados. Os dados do Monitor do Fogo, iniciativa da rede MapBiomas, revelam que o Brasil perdeu 5,65 milhões de hectares para queimadas em agosto, uma área equivalente ao estado da Paraíba. Esse número representa um aumento de 149% em relação ao mesmo período de 2023 e configura o maior valor da série histórica do projeto, que começou em 2019. Quase dois terços (65%) da extensão queimada em agosto foi em vegetação nativa, sendo o Cerrado o bioma com a maior área queimada, 2,4 milhões de hectares, ou 43% de toda a área queimada no Brasil no período. Com 2 milhões de hectares queimados, a Amazônia vem em seguida. Um a cada quatro hectares queimados está em áreas de pastagens, usadas para a pecuária, segundo o Monitor do Fogo.
Ainda que Executivo, Legislativo e Judiciário federais tenham recentemente assinado o Pacto pela Transformação Ecológica para enfrentar as mudanças climáticas, com o acordo prevendo mudanças na economia e na cultura visando diminuir a pressão do desenvolvimento nacional sobre os recursos naturais, de fato o que se percebe é uma completa dissociação na interpretação das necessidades e urgências ambientais pelos chefes do legislativo. Arthur Lira (PP-AL), por exemplo, se diz contrário a qualquer mudança no Código Florestal Brasileiro e Rodrigo Pacheco (PSD-MG) considera os incêndios como algo “marginal” e sem qualquer ligação com a legislação que o Brasil possui ou não para enfrentar o problema. O Observatório do Clima indica 25 projetos e três PECs em tramitação que afetam direitos ambientais por meio da flexibilização da proteção de vegetação, licenciamento ambiental e financiamento da política ambiental.
Também não é possível esquecer que o Congresso aprovou a Lei do Marco Temporal, determinando que as demarcações de terras indígenas seriam válidas apenas para áreas que estivessem sob ocupação até o ano de 1988. No entanto, em setembro de 2023, o STF rejeitou essa tese. Apesar disso, em dezembro, o Congresso voltou a aprovar uma lei contrária à decisão do STF, o que levou à contestação judicial por inconstitucionalidade. É amplamente conhecido que a demarcação de terras indígenas (TIs) é uma forma de proteção ambiental. O MapBiomas relata que as TIs ocupam 13% do território brasileiro, concentrando 19% da vegetação nativa, com apenas 1% de perda nos últimos 39 anos.
Não há como negar que o legislativo nacional prefere atuar em favor do agro e contra o meio ambiente e a população brasileira. Afinal, qual o sentido da aprovação do Marco Temporal se não garantir mais área para o agronegócio? E da Lei 14.785/23, que amplia a liberação de agrotóxicos no país, sendo que o Brasil já é o maior consumidor deste tipo de produto no mundo? Outro caso é o PL 5.822/19, que visa o licenciamento ambiental de lavras garimpeiras de pequeno porte em Unidades de Conservação de Uso Sustentável do tipo Floresta Nacional. Também há o PL 2.374/20, conhecido como o “PL da anistia para desmatadores“, pois permite a regularização de propriedades rurais que não respeitem os limites mínimos de reserva legal em razão de desmatamento de vegetação nativa realizadas entre 22 de julho de 2008 e 25 de maio de 2012. São tantos os exemplos de uma atuação legislativa que favorece o que hoje se entende por crime ambiental, que as falas de Rodrigo Pacheco e Arthur Lira sobre o Pacto pela Transformação Ecológica soam como um deboche de péssimo gosto.
Mas além de condenar o legislativo e seu trabalho que deprecia o meio ambiente brasileiro, é preciso responsabilizar o Governo Federal pelo seu financiamento massivo a um tipo de atividade que está claramente ligada aos recentes incêndios pelo país. De que adianta anunciar a liberação de 137 milhões de reais por meio de uma medida provisória para o combate aos incêndios no Pantanal e ao mesmo tempo comemorar o maior Plano Safra da história? Para se ter uma ideia, segundo um levantamento da Agência Pública, a fazenda Bauru, no município de Colniza (MT), foi a que teve mais focos de incêndio registrados em todo o ano de 2024; contudo, a fazenda Bauru tem um histórico envolvendo incêndios criminosos. Em 2022, uma operação policial descobriu um plano para fazer um novo “Dia do Fogo” no local. A terra alvo desses incêndios é grilada e posteriormente utilizada para pecuária ou plantio. E todo ano é isso, o setor agropecuário aproveita esse período de seca para ampliar ilegalmente suas áreas de cultivo, enquanto prepara a terra para o plantio da nova safra de commodities, como a soja.
O modelo de produção do agronegócio é, por natureza, prejudicial ao meio ambiente, além do sistema fundiário brasileiro ser excludente e necessitado de reforma agrária. A industrialização da agricultura para fazer frente ao crescimento do sistema capitalista causa a ruptura sociometabólica homem x natureza. Se essa dinâmica de expansão e exploração continuar, não há dúvidas que a espécie humana será extinta. Por isso, muito mais do que punir quem pratica crimes ambientais como os incêndios, é necessário um programa de desinvestimento e sanções ao agronegócio. Afinal, existe lógica em continuar fazendo Planos Safra bilionários, promover isenção de impostos para esse setor que está vinculado a crimes ambientais, mau uso do solo, violência no campo e uma profunda desigualdade social? Através de medidas governamentais, a sociedade brasileira vem ano após ano financiando toda a problemática do agro. Isso precisa acabar!
Precisa-se urgentemente ir além: as pessoas estão cientes que a coisa toda está indo mal, ninguém está feliz respirando o ar tóxico a que uma grande parte do país foi submetido nos últimos dias por conta de queimadas criminosas, sem contar os rios infectados por agrotóxicos e uma ampla gama de alimentos também cobertos desses “agentes fitossanitários”. Reforçar a necessidade de agir para garantir a reforma agrária, a agroecologia e a demarcação das terras indígenas e quilombolas é tarefa imediata a quem de fato se preocupa com o futuro desse país. Assim como desfinanciar o agronegócio e promover sanções severas a quem pratica crimes ambientais. Basta de dinheiro público para o agro!
(*) Bianca Valoski é doutoranda no Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas da UFPR, dentro da linha de pesquisa em Economia Política do Estado Nacional e da Governança Global. É servidora da Câmara Municipal de São José dos Pinhais, onde trabalha com finanças públicas.