A cena atual é um movimento em aceleração. Depois de ter feito uma declaração conjunta com o Brasil no último 30 de julho, na pessoa dos dois presidentes, que “se comprometeram a manter uma coordenação estreita sobre o assunto [a apuração dos votos na eleição presidencial na Venezuela]”, o governo norte-americano deu um giro completo apenas um dia depois, reconhecendo o candidato da oposição como vencedor, embora sem evidências de que ele tenha vencido o pleito.
Para compreender essa cena em alta velocidade, temos de retroceder um pouco e atentar para as razões por trás de tamanha internacionalização no pleito venezuelano. O Acordo de Barbados de outubro de 2023 serviu como um elemento de normalização da política venezuelana, sedimentando a oportuna, para não dizer oportunista, reaproximação dos Estados Unidos com a Venezuela em decorrência do boom do petróleo de 2022.
No Acordo, mediado pela Noruega, ocorreu um troca: elementos radicais da oposição poderiam apresentar uma candidatura presidencial, enquanto isso as potências ocidentais lideradas pelos Estados Unidos levantariam as pesadíssimas sanções contra Caracas – a maior parte delas na gestão Trump, embora iniciadas na administração Obama em 2014 como retaliação à vitória eleitoral de Nicolás Maduro sobre Henrique Capriles em 2013.
Ou seja, tudo isso ocorreu antes da derrota do chavismo na eleição legislativa de 2015, cujo resultado foi a crise que levou o então presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, a tentar assumir a presidência venezuelana de maneira para lá de controversa – Guaidó foi reconhecido pelos Estados Unidos e boa parte dos países europeus, mas nunca assumiu a “interinidade” de forma regular.
Enquanto isso, a administração Trump acelerou as sanções, cujo objetivo era tomar o petróleo venezuelano – sim, são palavras do próprio Trump –, gerando uma tragédia socioeconômica apoiada, no entanto, pela oposição do país em sua cruzada para assumir o poder – a qualquer custo, sem qualquer exagero nessa afirmação. O chavismo, como sabemos, balançou mas não caiu.
Um acordo mefistofélico?
O giro americano de 2023, mas, antes, seu gesto de reaproximação de março de 2022, foram fruto da necessidade de oferta de petróleo no mercado global, uma vez que as sanções que eles mesmos aplicaram contra a Rússia lhes gerou uma inflação relevante. A solução foi voltar atrás na asfixia à Venezuela, mas em troca Washington pediu, e conseguiu, colocar seu cavalo no páreo.
Depois de uma prolongada situação de penúria, e incentivadas por aliados latino-americanos, as instituições venezuelanas toparam o acordo. A economia venezuelana conseguiu respirar depois de anos de uma blitz avassaladora de anos, cresceu bem, viu a inflação diminuir e, pouco a pouco, o país assistia a uma normalização da vida, enquanto se preparava para a eleição presidencial de 2024.
No meio do caminho, a justiça venezuelana bloqueou Maria Corina Machado, uma oligarca local, de disputar as eleições presidenciais, em razão da sua participação na conspiração contra as eleições de 2013. No seu lugar, o ex-diplomata Edmundo González foi ungido como principal candidato da oposição – ainda que como preposto de Maria Corina. González tem um histórico de colaboração com a CIA em El Salvador.
O teste de fogo seria a eleição presidencial: como se comportariam os fiadores de Barbados e os atores internos? Tudo correria bem ou o país implodiria numa disputa fratricida acirrada pelo papel dos Estados Unidos? A essa altura, questões já são História. O Conselho Eleitoral da Venezuela declarou Maduro vencedor, mas as eleições foram contestadas por González e Maria Corina, ainda que sem provas.
O day after
Diante do festival de reconhecimentos e ataques ao pleito, no dia seguinte à votação, emergiu também a posição brasileira, que aguardava a contagem final dos votos – Maduro foi apontado vencedor com 80% das urnas contadas – e a comprovação das atas eleitorais, o que foi acompanhado pela Colômbia e, um pouco menos pelo México, este tendente a creditar a autoridade eleitoral venezuelana, apenas aguardando o término da contagem.
O governo López Obrador apenas repetiu a posição que teve em relação ao último pleito presidencial dos Estados Unidos, cuja contagem se arrastou e foi controversa. O Brasil, no entanto, era o único país que possuía um enviado especial de alto nível, Celso Amorim, que no cargo de assessor especial da presidência tem emulado quase um cargo de conselheiro de segurança nacional, à moda americana.
Entre um chumbo trocado de governos pró-americanos negando a legitimidade das eleições, seja na figura da pouco legítima presidenta do Peru, Dina Boluarte, o extremista Javier Milei na Argentina ou o modernado Boric no Chile, se puseram no polo oposto de Cuba, Bolívia, Nicarágua e Honduras. Mas se China e Rússia foram rápidas em reconhecer a vitória de Nicolás Maduro, o Brasil manteve uma posição – ao menos pretensamente – salomônica.
A conversa de Biden e Lula, aparentemente, levou a um desfecho em direção à proposta brasileira – e sua direção indeterminada. De repente, Boric maneirou o discurso, Milei, cuja diplomacia tinha sido expulsa por Maduro, agradeceu o Brasil por assumir a embaixada argentina em Caracas, e mesmo Maria Corina e Edmundo González passaram a reconhecer a interlocução brasileira.
Mas se tudo que é sólido desmancha no ar, o que não é sólido desmancha mais rápido. A estratégia Amorim durou algo como um dia em sua glória. Com Maduro recorrendo à Suprema Corte para que todos os candidatos apresentassem suas atas, e a divulgação de novos dados da apuração – que, pelo visto, tem demorado menos que uma contagem americana –, o governo norte-americano mudou sua posição, reconhecendo a vitória da oposição.
A estratégia intermediária foi atropelada
A hipótese de que Biden possa ter dissimulado diante de Lula é remota. O governo americano ter mudado de posição em um dia, sem um fato novo – a não ser o cumprimento das exigências feitas – sugere um racha interno, entre uma linha dura e outra moderada de intervenção, a ponto disso conduzir a uma desautorização de um pronunciamento presidencial em conjunto com o presidente de uma outra nação.
Só que isso acirra novamente os ânimos, com mais países reconhecendo a vitória de Maduro, depois da atualização, e a quase totalização da apuração, mantendo sua dianteira, enquanto os países que não reconheceram o pleito reassumiram uma ofensiva que eles mesmos tinham freado em declarações públicas ao longo de 1º de agosto. Nesse sentido, a estratégia cautelosa de Amorim acabou frustrada, porque ela dependia da validade americana.
O resultado é óbvio. O México, que há poucos dias foi muito vocal em repelir a ofensiva da OEA contra o pleito venezuelano, reassumiu a ofensiva na denúncia contra a ingerência americana. A posição brasileira se tornou em grande medida obsoleta pelo decorrer dos fatos, uma vez que se autoridade eleitoral finalizar as exigências, o Brasil parecerá retardatário, mas caso não, a impressão será a mesma com o sinal trocado.
O debate que se insurge sobre Venezuela no Brasil passou a ser, no fim das contas, uma questão de projeção da própria política interna brasileira, onde não interessa para a direita reconhecer a vitória de Maduro, mesmo aquela antibolsonarista – não importam os fatos. Mas também produziu uma disputa entre o campo liberal e a esquerda na frente ampla, o que tem a ver com a política para o futuro.
Em tese, uma vez que mantém relações com a Venezuela, ao Brasil restava atestar os resultados da autoridade eleitoral daquele país ou, soberanamente, romper relações. A ideia de uma “mediação forte” sempre teve o alto risco de falhar se as potências tomassem posição em polos opostos, o que tornava desde sempre a sorte dessa estratégia dependente de fatores externos.
O próprio Estado venezuelano, ao transigir com uma série de mediações internacionais, seja do ponto de vista institucional ou político, se expôs ao risco das mudanças de opinião causadas pela dura realidade das decisões estratégicas alheias. Hoje, o que temos é uma vitória de Maduro nos termos da lei e das instituições venezuelanas, afinal as eleições ocorrem naquele país.
Hoje, o que está em questão é a soberania da Venezuela e se os Estados Unidos têm um papel arbitral absoluto sobre a política latino-americana. Ou se pode ser exigido de algum país da região, em termos eleitorais, o que jamais se exigiria dos Estados Unidos em suas atribuladas eleições e intermináveis contagem de votos. Diante da roída de corda do acordo pelos Estados Unidos, o governo brasileiro precisa se reposicionar – e logo.