Não consigo nem expressar como estou feliz de ver Julian Assange, pelos vídeos rodando na internet, caminhando como um homem livre. Chorei de emoção quando soube, há pouco mais de 48 horas, que o impasse entre um homem tenaz e o governo da mais poderosa potência mundial tinha se rompido em um acordo e que ele seria libertado enfim.
Nesta edição extra da newsletter, preciso dizer que, no entanto, as circunstâncias da soltura de Assange não são para serem celebradas.
Confira entrevista de Opera Mundi com Natalia Viana
O acordo já havia sido selado na semana passada: o fundador do WikiLeaks teria que se declarar culpado por conspirar para “receber e obter” documentos secretos, além de transmitir esses documentos para “pessoas sem autorização”. Em troca, a sentença seria de cinco anos de “pena cumprida”, os cinco anos que ele permaneceu na prisão de segurança máxima de Belmarsh. E ele poderia sair livre do tribunal das remotas ilhas de Mariana do Norte, uma colônia norte-americana no Pacífico que ninguém sabia que existia até então.
Mas quem acompanhou, como eu, com o coração na mão, a audiência de ontem à noite, seguiu um teatro de cartas marcadas, mas carregado de humilhação. No pequeno prédio judicial da sonolenta ilha, a juíza Ramona V Manglona começou perguntando a Assange se confirmaria o que fez e se faria uma admissão de culpa. Ele respondeu que, trabalhando como jornalista, havia incentivado uma fonte a fornecer informações confidenciais e acreditava que a Primeira Emenda protegia essa atividade. Mas agora admitia que era uma violação da Lei de Espionagem dos EUA. Não contente, a juíza pediu esclarecimentos. Perguntou se ele estava admitindo culpa porque “de fato ele era culpado das acusações”.
“Eu sou”, disse Assange, depois de uma longa pausa.
Claro que Assange não é culpado de crime nenhum. O que ele fez é apenas o que qualquer jornalista investigativo já fez inúmeras vezes. Conversar com fontes, receber documentos de interesse público – sejam secretos ou não – dar tratamento jornalístico, publicá-los. Não há nenhuma dúvida que os documentos em questão, dados sobre violações de direitos humanos nas guerras do Iraque e Afeganistão, detalhes de abuso de poder e corrupção por parte de diplomatas, são de profundo interesse público.
Com a condenação, o governo de Joe Biden manchou suas mãos ao se tornar o primeiro da história norte-americana a condenar um publisher, editor, ou jornalista por publicar documentos secretos. Pior: Assange nem é norte-americano, nem tinha pisado os pés nos EUA quando recebeu, deu tratamento jornalístico e publicou esses documentos.
Isso prova que a lei norte-americana não tem limites geográficos e pode apanhar qualquer jornalista, em qualquer lugar do mundo, que ousar analisar documentos secretos da maior potência mundial.
Coloca em risco jornalistas como eu e como todos aqueles que reportaram sobre os documentos secretos. E pretende ter como resultado aquilo que em inglês se chama “chilling effect” – assustar jornalistas do mundo inteiro para que não denunciem violações por parte dos EUA. Tamanha arrogância. Nesses 14 anos em que Assange esteve sob custódia, 4 países foram envolvidos, dezenas de presidentes, procuradores, advogados, mediadores, juízes, embaixadores, milhões de reais foram gastos.
Depois de Assange ter sido torturado (como atestou o ex-relator de tortura da ONU Nils Melzer) diante dos olhos de milhões de pessoas apenas porque os Estados Unidos queriam fazer dele um exemplo para outros jornalistas, só consigo pensar que estamos diante da cristalização de um esforço abusivo, cruel. Não se trata de justiça, mas de vingança. E as palavras da subserviente juíza Ramona Manglona só reforçaram esse espírito imperialista: “Por essas razões … com base neste caso de espionagem muito sério contra você … estou, de fato, condenando você a um período de tempo já cumprido”.
A quem ela acha que engana no seu teatro? Não há “caso sério de espionagem”, mas um sério caso de jornalismo corajoso que mudou o mundo. Há, sim, o caso de um país que se gaba de “ser a voz do mundo livre” mas que não tem qualquer escrúpulos de desvirtuar processos legais, políticos, sociais, para fazer valer seus interesses.
Também me chocou, no julgamento, o fato de que o governo dos Estados Unidos admitiu que não houve uma única pessoa que eles possam confirmar ter sofrido algum perigo por essas publicações. Isso sempre foi martelado para diferenciar Julian dos “jornalistas profissionais”, dizendo que as publicações colocaram vidas em risco. E nunca foi verdade.
Mentindo de maneira contumaz, eles venceram. Conseguiram deteriorar a segurança dos jornalistas do mundo todo, calar durante 5 anos uma das vozes mais relevantes para o debate sobre democracia e tecnologia, afogar um nascente movimento de vazadores que poderia ter de fato levado à justiça toda violência cometida durante guerras inúteis.
Me consola o fato que a história é circular: eles venceram agora, mas não para sempre. Porque cada semente dá seus frutos, e o nosso trabalho, aqui na Pública, é sem dúvida um dos muitos frutos que o trabalho do WikiLeaks deixou no mundo. Aqui estamos. Seguimos e seguiremos investigando homens poderosos que não veem limite para impor suas vontades.
(*) Natalia Viana é diretora executiva da Agência Pública