Terça-feira, 10 de junho de 2025
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A situação do povo palestino deteriorou-se desde 2 de março, quando do reinício das hostilidades perpetradas pelo Estado sionista, que se negou a dar continuidade às negociações para a implementação da segunda fase do cessar fogo acordado com os Estados Unidos, o Catar e o Egito. Tal entendimento, alcançado no final do ano passado, viabilizou a troca de 1900 prisioneiros dos cárceres sionistas por 33 cativos israelenses desde 7 de outubro. Ao final deste processo, executado em oito etapas, o Estado sionista alterou sua política, passando a demonstrar suas verdadeiras intenções: ficar em compasso de espera depois de executar um simples movimento de conciliação com a nova (e até certo ponto desconhecida) política externa do governo norte-americano que tomou posse em janeiro e, preparar a reaglutinação de forças para a redefinição dos objetivos e meios para alcançar a limpeza étnica da Palestina através da implementação de uma fase final da política social genocida.

O cerco ao enclave tornou-se total e os covardes bombardeios foram retomados (e até se ampliaram em relação ao período anterior), agora sem oferecimento de qualquer justificativa de que no meio da população civil atingida pelas potentes bombas haveria algum membro da resistência contra a dominação da Palestina. A utilização do software de reconhecimento “where is my dad” não parece mais guiar os ataques indiscriminados com bombas de 200 libras. Os bombardeios aéreos se tornaram auto-justificáveis, sem necessidade de esclarecimento ou oferecimento de motivações para a sua ocorrência. A jornalista Bisan Owda, que vive na cidade de Gaza, afirmou que o que está ocorrendo neste momento parece ser o começo da política genocidária, tal a intensidade dos bombardeios, que desta feita estão atingindo todo o enclave e não só uma ou outra região como ocorria até dezembro de 2024. Fique firme querida Bisan, precisamos muito de você!

Manifestação pró-palestina em Washington durante visita de Netanyahu aos EUA, em 7 de fevereiro de 2025. <br> (Foto: Diane Krauthamer / Flickr)
Manifestação pró-palestina em Washington durante visita de Netanyahu aos EUA, em 7 de fevereiro de 2025.
(Foto: Diane Krauthamer / Flickr)

Além dos bombardeios contra a população civil indefesa (destruindo vidas e infra-estrutura necessárias à reprodução da vida social) a proibição da entrada de qualquer tipo de ajuda humanitária voltou a compor o quadro da política social genocida contra o povo palestino promovida pelo Estado sionista.

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Também é expressivo que o ímpeto pacifista do novo presidente norte-americano, Donald Trump, tenha se desgastado tão rapidamente. Não só o conflito entre a Federação Russa e a OTAN (via Ucrânia) não foi e não será resolvido em curto espaço de tempo, como também a confusão administrativa e de política externa implementada pela nova administração informou ao Estado sionista que o campo para a retomada da política social genocida a todo vapor estava aberto. Eles não precisariam mais ficar expostos às pressões norte-americanas pela negociação para a libertação dos cativos. A manutenção do avanço russo em território ucraniano e a crise criada pela administração norte-americana com a caótica política de elevação das tarifas de importação expôs, ao menos circunstancialmente, uma debilidade do papel deste país na condução da situação no Oriente Médio. Após as longas filas de palestinos retornando para seus destinos originais em dezembro, com o início do cessar-fogo, a retomada da política social genocida é relançada em nova e mais profunda produção de sofrimento. Os objetivos iniciais genocidários expostos em outubro de 2023 pelo então ministro da Defesa Yoav Gallant foram repostos em toda a sua crueza. Encerrava-se a expectativa que perdurou por dois meses de que o processo de massacre pudesse ser encerrado por pressão dos EUA.

Os sionistas perceberam que existia uma “janela de oportunidades” para sobrepor a pressão do presidente Donald Trump num rudimento de plano delirante de remoção de seu país do povo palestino. Ele se dispôs teatralmente a transformar o enclave em um resort de alto luxo. Ao promover histrionicamente esta solução, os sionistas perceberam que não havia solução palpável a vista e sim um espaço para o retorno do ataque à população palestina indefesa. No tocante à remoção, Egito, Jordânia, Sudão, Somália e Somalilândia já foram apontados como eventuais receptores desejados pelo Estado sionista da população palestina. Todas estas opções foram inviabilizadas e a nova opção parece ser a Líbia.

Dentro desta atuação pouco clara dos governos norte-americano e sionista, a ocupação terrestre de Gaza para enfrentamento das forças militares da resistência está neste momento sendo retomada. Os alvos são a ampliação da dominação do território da Faixa de Gaza (já parcialmente ocupado ao norte, até o corredor Netzarin, contabilizando o controle de cerca de 35% do território total) e a reentrada pelo sul a partir do corredor Califórnia. A retomada da agressão terrestre indica que não foi abandonada a tentativa de libertação pela violência dos 59 cativos restantes, assim como a intenção de produzir ainda mais dano à infraestrutura e a população para fins de tornar como única opção o abandono da Palestina ocupada pela população originária. Ainda, o controle territorial direto pelo Estado sionista do território da Faixa de Gaza nos parecer ser o plano real que está em marcha dentro do processo de aplicação da política social genocida contra o povo palestino. A manutenção da população dentro de um espaço ainda mais reduzido que ela ocupa atualmente, no sul do enclave, é a opção mais concreta que o Estado sionista tem à mão. Por outro lado, intuimos, a continuidade da presença da população originária esprimida num micro-território repõe a argumentação de que existe uma ameaça a ser combatida, o que favorece os argumentos do Estado sionista para manter ativa a política social genocida contra o povo palestino.

A fome generalizada já é uma realidade para a grande maioria da população da Faixa de Gaza. A demora em tomar qualquer medida para encerrar este problema indica apenas que quando a solução vier, qualquer que seja, ela já encontrará a população extremamente debilitada e desprovida de energias vitais. Após esta fase de debilitação pela fome, a implementação de quaisquer políticas de exclusão da população palestina de seu país poderá ser vista como uma espécie de ação humanitária, acobertando as razões para que tal situação tenha sido gestada pelo imperialismo e seu preposto local, o Estado sionista. A partir de 18 de maio, gestões diplomáticas – cuja origem não foi informada pelo governante sionista –, reduziram o bloqueio da entrada de víveres. Esta decisão foi tomada de forma solitária pelo primeiro-ministro, sem consulta ao gabinete, como se poderia esperar. Esta manobra do governante é, em nosso entendimento, proposital e mal-intencionada. Ela visa criar um bolsão de insatisfação dentro da variada base de apoio parlamentar que sustenta o governo com poucos votos além do necessário para manter o poder da coalizão dominante no parlamento sionista. Sendo assim, quando conveniente, o primeiro-ministro sionista se voltará para esta situação para, novamente, relançar o bloqueio da entrada de bens no interior da Faixa de Gaza alegando que a estabilidade política interna é míster na condução da “guerra contra o terror”. Além disso, Netanyahu e o ministro de Finanças Smotrich declararam que as liberações dos caminhões com ajuda humanitária, estacionados há poucos minutos da fronteira com a Faixa de Gaza, serão feitas para fins estratégicos e não humanitários. E com que prazer estas duas criaturas devem ter elaborado e exposto esta diretriz! (sic) 

Uma tese possível para explicar esta nova posição é a de que o estacamento do cerco total é produto da pressão norte-americana sobre o governo sionista como parte do acordo realizado pelo governo daquele país pela libertação do cativo israelo-americano Idan Alexander.

As resistências à política genocidária desde o começo da sua implementação, em outubro de 2023, são realizadas com massivas manifestações públicas em importantes centros urbanos europeus e norte-americanos. Performances de indivíduos ou grupos no interior de atividades públicas ou privadas também são dignas de nota pela coragem e desenvoltura dos manifestantes na denúncia de políticos, governos ou empresas na parceria pela implementação da política social genocida contra o povo palestino. Lembramos aqui, a título de homenagem, o protesto da engenheira de software Ibithal Aboussad, demitida da Microsoft por se manifestar publicamente nas comemorações do cinquentenário da empresa. Ela acusou seu empregador de “ter sangue nas mãos” ao fazer parceria na elaboração de softwares de IA com o Estado sionista. Outra funcionária, Vanyia Agrawal, na mesma ocasião também se indispôs vocalmente contra esta consorciação, tendo também sido demitida. A empresa manifestou-se de forma piegas, indicando que oferece “caminhos para que as vozes sejam ouvidas”.

Sendo assim, notamos que a implantação da política social genocida contra o povo palestino pelo Estado sionista sofre alguns poucos reveses por injunções externas (com muito menos impacto da situação política interna) e se mantém com uma coerência e persistência avassaladoras para a destruição do bem-estar da população palestina. Tal fato se mantém desta forma porque o que está em jogo não é apenas o contexto local para viabilizar a correlação de forças promotora da política social genocida. É um erro analítico brutal avaliar a continuidade da política social genocida contra o povo palestino a partir do esforço do primeiro-ministro em se manter no poder e evitar processos judiciais. Ao contrário, são as circunstâncias políticas, sociais e ideológicas locais e internacionais que sancionam cotidianamente como válido o genocídio, e a partir daí oferecem os meios pelos quais o primeiro-ministro Netanyahu adquire a capacidade de se equilibrar no poder com a execução da política social genocida.

O descalabro desta situação é formado por duas outras dimensões da vida social no capitalismo contemporâneo. A primeira é o fato de que o Estado sionista exerce, em termos gramscinianos, o exercício da coerção (sobre a população palestina) e consenso (para sua própria população) de forma exemplar. A aplicação destas formas de exercício do poder pelo Estado sionista tornou-se um modelo de democracia burguesa contemporânea, iluminando todos os governos imperialistas sobre como exercer políticas repressivas. O pano de fundo desta necessidade é a profunda crise econômica e fiscal que abala as políticas de bem-estar e, desta forma, favorecem o crescimento da extrema-direita nos processos eleitorais. Ora, se os governos democráticos (de centro-direita ou centro-esquerda) lançam mão da repressão para conter protestos e críticas da classe operária, o poder do Estado se corrói ainda mais e a percepção do eleitorado acaba por incorporar a formação de governos repressivos para contar a crise econômica e social e, vinculado a isto, a aprofundar o processo de recrudescimento da coerção do Estado sobre a sociedade civil.

Estas políticas são aplicadas de forma generalizada sobre a classe trabalhadora (especialmente os imigrantes), mas também sobre várias manifestações de crítica ao funcionamento do capitalismo. A ascensão de vários governos de extrema-direita já reflete a mudança do pêndulo da predominância da hegemonia (consenso) para a da coerção (violência) como forma de regulação da vida social. Sobre as manifestações de apoio aos palestinos pelas populações dos países capitalistas avançados, esta repressão é mais intensa para, ao final, evitar qualquer forma de insurgência contrária à execução da política social genocida, o que poderia levar ao questionamento pelas populações destas sociedades sobre as relações de produção e dominação de classes que elas também estão expostas.

Este aspecto teórico da implementação da política social genocida contra o povo palestino já foi por nós abordado em outros artigos neste Opera Mundi. Ele precisa, no entanto, reconhecemos, ser desenvolvido em maior profundidade para nos oferecer um quadro analítico do condicionamento social, histórico e ideológico da política social genocida no interior da crise do funcionamento da democracia e da incorporação jurídica dos direitos humanos na vida política do mundo ocidental, situações que foram generalizadas após a Segunda Guerra Mundial. 

Uma segunda forma de abordar o tema é o contexto regional, intrínseco ao que costuma denominar-se de Oriente Médio e, no seu interior, o papel que o Estado sionista pretende nele exercer. Nesta dimensão está em curso o que temos chamado de “sionismo interno”, dirigido ao espaço físico ocupado pelo Estado sionista. Concomitantemente, existe também um outro movimento: a implementação pelo Estado sionista do que chamamos de “sionismo externo”. Potencialmente o “sionismo externo” é um instrumento a ser utilizado em todas as áreas de interesse estratégico para o Estado sionista. Neste caso, a mesma orientação genocidária (mesmo que num estado embrionário) está sendo aplicada neste momento no Líbano e na Síria, além, é claro, da Cisjordânia. Esta orientação está pronta para ser aplicada a qualquer outro país da região. A fórmula “ocupar um espaço geográfico e em seguida promover o início de uma política social genocida” em meio à tensões internacionais (daí alegando problemas de segurança do Estado sionista), é a formulação clássica desta orientação. 

E é esta mesma orientação que está em curso na diversificada ação exterior do Estado sionista no contexto regional do Oriente Médio. Nesta, o importante é ampliar o horizonte tanto de uma eventual expansão territorial (em direção à formação da Grande Israel) quanto (quando aquela não for viável) dimensionar a projeção de poder do Estado sionista em direção à construção de sua existência enquanto uma potência sub-imperialista (na chave das análises desenvolvidas por Rui Mauro Marini no interior da Teoria da Dependência). Esta conformação é o que estamos chamando de pax israelensis, uma forma de conformação do imperialismo ocidental no contexto regional. Apenas a República Islâmica do Irã está (até o momento) fora deste escopo, dada a distância física da fronteira oriental do Estado sionista e a orientação de não-compactuação com as políticas imperialistas do mundo ocidental e seu proxy mais relevante, o Estado sionista. Mas não devemos de forma nenhuma subestimar o poderio material e imaterial do sionismo externo, que contém elementos políticos agregados no seu entorno (além de ilimitados recursos financeiros) para executar uma política de criação artificial de instabilidade no Irã (tipo revoluções coloridas, como ocorrido recentemente na Ucrânia) caso a opção de guerra direta não seja viável.

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Após o encerramento deste artigo surgiu no noticiário um conjunto de fatos que merecem ser comentados por agora, e não num próximo artigo. Uma rebeldia mais acentuada contra a política social genocida foi indicada por Inglaterra, França e Canadá. Este último é governado por um governo de centro-esquerda eleito por efeito da reação ao chauvinismo do presidente norte-americano que, de forma tonitruante, defendeu a transformação do país em um estado federado aos EUA. França e Inglaterra, encabeçando a União Europeia, apontam que reconhecerão em conjunto o Estado da Palestina e, em segundo lugar, poderão aplicar sanções contra o Estado sionista caso não cesse a política social genocida. A França, através de seu presidente François Macron, já havia rascunhado esta ideia meses atrás, em meio ao bombardeio do Líbano pelos sionistas. O noticiário da época apontou que estes se vingaram da posição francesa bombardeando (e destruindo) as instalações da empresa francesa Total Energies que fornecia combustível de aviação no aeroporto de Beirute. Também já é público o afastamento recentíssimo da política externa norte-americana das posições do governante sionista, malgrado esta posição não tenha afetado o abastecimento de produtos militares e o oferecimento de inteligência que são elementos vitais para a implementação do “sionismo externo”.

A questão que nos colocamos para entender a natureza destas notícias, que podem inicialmente indicar uma ruptura com o paradigma de exterminação do povo palestino pela via da política social genocida e/ou da limpeza étnica, é porquê somente agora há esta mudança de posição. Em nosso entendimento, o que está em jogo são dois fatores. O primeiro é o fato de que a responsabilidade pela aplicação da política social genocida contra o povo palestino pelo Estado sionista será visto no futuro como uma responsabilidade compartilhada entre este e os seus fornecedores-apoiadores-financiadores. Neste momento, quando a explicitação do genocídio já se torna quase irreversível, o oportunismo político aparece nos governos que até agora foram lenientes com a sua aplicação. Estes não querem “ficar mal na fita”. Um segundo elemento que consideramos é a extrema dificuldade em ter em mãos um “modelo” desenvolvido pelo Estado sionista de aplicação da hegemonia(consenso)/coerção(violência) tão eficaz que os países capitalistas desenvolvidos possuem dificuldades em se libertar desta dimensão da vida política e social. Não podemos esquecer que massivas manifestações públicas foram realizadas em 18 de maio de 2025 em várias cidades europeias, escalaram a amplitude da insatisfação popular. Os sionistas e seus apoiadores já são, há muito, minoria nas manifestações públicas e restringem-se a produzir argumentações e interpretações dos fatos que colidem cognitivamente com as imagens extraídas no interior da Faixa de Gaza. Assim, mesmo tardiamente para o povo palestino, parece que estamos vivenciando uma pequena ruptura na couraça de aço que protege e legitima o Estado sionista e sua política social genocida contra o povo palestino. A demora na sua ocorrência pode (de fato cremos que deve) representar não uma mudança efetiva mas um reposicionamento desta mesma orientação em direção de outra mais segura, que cause menos danos na imagem pública das democracias ocidentais. Nestas os governantes democratas (de centro e de direita) não possuem condições de administrar politicamente a cessão do poder para os partidos de extrema-direita.

Este artigo é a 21ª parte da série “Gaza, ano zero: as raízes do Holocausto do povo palestino”. Leia aqui as outras partes.

(*) Bernardo Kocher é Professor de História Contemporânea – Universidade Federal Fluminense