Trinta e dois anos dentro da mesma rede de bibliotecas públicas. Algumas grandes, outras pequenas. Algumas cheias de vida, outras silenciosas demais. Algumas projetadas para durar, outras já nascidas com prazo de validade. Já vi bibliotecas sendo defendidas como espaços essenciais, já vi sendo tratadas como um serviço a ser cortado na próxima gestão.
Já vi salas de leitura lotadas e mesas vazias, acumulando poeira junto com os livros que ninguém mais pega. A biblioteca pública nunca é apenas um prédio com livros — ela carrega as marcas do tempo, da política e das escolhas de quem tem poder sobre ela.
Ao longo desses anos, aprendi que nada é garantido. O que hoje é uma biblioteca cheia de gente, amanhã pode ser um depósito esquecido e mitigado. O que hoje é um direito assegurado, amanhã pode ser apenas mais um corte de orçamento justificado por “falta de demanda” ou irrelevância.
Foi assim que entendi: a biblioteca, além de um espaço de conhecimento, é um campo de disputa. Pode ser um lugar de acesso ou um filtro seletivo, um espaço aberto ou uma barreira invisível. Pode estar com portas abertas, mas com barreiras intransponíveis. Tudo depende de quem define as regras.
Talvez por isso eu tenha voltado a pensar em E. J. Josey, e ele é essencial.
Se, para mim, a biblioteca pública nunca foi um lugar neutro, para ele, foi um espaço ativamente negado.
Quem foi E. J. Josey?
E. J. Josey (1924–2009) foi bibliotecário, professor e ativista dos direitos civis norte-americano. Desafiou a segregação racial dentro das bibliotecas e das instituições que as administravam. Ele foi um dos primeiros negros a se formar em Biblioteconomia nos Estados Unidos e passou a vida contestando um sistema que impedia bibliotecários negros de ocuparem espaços de liderança.
Mas Josey não se contentou em ser apenas aceito dentro da biblioteconomia branca. Ele queria transformá-la. Desmantelou barreiras institucionais, abriu caminhos para outros e levou a equidade racial para o centro do debate profissional. Foi presidente da American Library Association (ALA), fundou o Black Caucus of the American Library Association (BCALA) e lutou por mudanças estruturais muito antes de o ativismo virar marketing corporativo, antes de diversidade se tornar slogan e inclusão ser reduzida a números em relatórios institucionais.
Ele fez tudo isso antes que o filtro liberal transformasse o ativismo em marketing meritocrático, antes que diversidade se tornasse um slogan e inclusão fosse algo a ser quantificado em relatórios institucionais.
Para ele, não bastava ocupar espaços — era preciso mudar a estrutura que os tornava inacessíveis. Sua trajetória não foi uma história de “superação individual”, mas de luta coletiva e coerência.
Seu papel como líder classista foi uma extensão dessa luta. Josey não apenas questionou a exclusão racial na biblioteconomia, mas também denunciou as desigualdades dentro da própria profissão. Foi um crítico do elitismo institucional e defendeu que bibliotecários negros e de classes trabalhadoras tivessem acesso a cargos de decisão. Para ele, o direito ao conhecimento não se separava do direito ao trabalho digno e à representatividade real dentro das instituições.
Além de ativista, Josey foi também professor universitário e formador de gerações. Lecionou em diversas universidades, incluindo a Universidade de Pittsburgh, onde ajudou a moldar novos bibliotecários comprometidos com a inclusão e a justiça social. Sua atuação na academia foi uma continuidade de sua luta: ele não apenas abriu caminhos, mas garantiu que houvesse mais pessoas preparadas para seguir a luta.
Josey nasceu em Norfolk, Virgínia, em 1924, em um mundo onde bibliotecas públicas não eram para pessoas como ele. Se fosse negro, você não entrava. Se entrava, não podia sentar. Se sentava, não podia pegar um livro. Para Josey, a biblioteca não era um refúgio, mas um lugar onde sua presença era negada.
A exclusão não se limitava às bibliotecas. Filho de uma família pobre, perdeu o pai cedo e precisou trabalhar antes mesmo de concluir o ensino médio. A vida adulta chegou antes da hora, sem cerimônia.

Para E. J. Josey, a biblioteca foi um espaço ativamente negado
Quando foi para o Exército, a segregação o acompanhou. Durante a Segunda Guerra Mundial, viu soldados negros arriscando a vida pelo país, mas sem o direito de usar os mesmos espaços que os brancos. Certa vez, ao entrar em um ônibus militar, o motorista ordenou que ele cedesse o lugar. Josey recusou. O motorista sacou uma arma. Ele continuou parado.
Não dispararam contra ele naquele dia. Mas ficou claro que esperavam que ele soubesse o seu lugar.
Talvez por isso tenha escolhido um caminho improvável.
Depois do Exército, Josey estudou História na Universidade Howard e fez mestrado em Columbia. Mas queria mais. Ingressou na Universidade Estadual de Nova York (SUNY) Albany para se tornar bibliotecário.
O diploma, no entanto, não mudou a realidade. Bibliotecas ainda não contratavam bibliotecários negros. As associações da profissão no sul dos Estados Unidos sequer aceitavam membros negros. A mensagem continuava clara: a biblioteca não era um espaço para ele.
Mas Josey não aceitava migalhas. Ele queria mudar as regras.
Nos anos 1950 e 1960, enquanto o país começava a desafiar a segregação, a biblioteconomia permanecia confortável em sua exclusividade branca. Algumas bibliotecas permitiam a entrada de negros, mas os relegavam a seções separadas, com acervos limitados e sem nenhum bibliotecário negro em posições de decisão.
Foi então que, em 1964, Josey propôs uma resolução dentro da American Library Association (ALA) proibindo a organização de manter vínculos com associações estaduais segregadas. Parecia óbvio, mas não era.
A ALA se orgulhava de sua “neutralidade”. Mas o que significava essa neutralidade quando bibliotecários negros sequer podiam se associar? Aliás, não é raro ouvir esse mesmo argumento em conselhos no Brasil atual. A pasmaceira resiste.
A resolução foi aprovada. A segregação acabou no papel, mas a exclusão persistiu.
Josey sabia que não bastava estar presente. Era preciso poder falar, decidir, transformar, antes, confrontar.
Foi por isso que, em 1970, ajudou a fundar o Black Caucus of the American Library Association (BCALA). Porque não basta ser permitido—é preciso ter poder dentro da estrutura.
E. J. Josey morreu em 2009. Seu nome deveria estar mais presente na história da biblioteconomia. Mas o tempo tem o hábito de suavizar figuras incômodas, tornando-as meras notas de rodapé em discursos mais palatáveis.
Agora, as bibliotecas públicas continuam frágeis, continuam alvos de cortes, continuam espaços de disputa. Ainda há livros que não chegam às estantes. Ainda há quem precise justificar sua presença dentro delas.
Josey abriu caminho. Mas caminhos não se mantêm abertos sozinhos.
A pergunta que fica é: quem continua andando por eles?
(*) Ricardo Queiroz Pinheiro é bibliotecário e pesquisador, militante do livro e leitura, doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC).