Terça-feira, 15 de julho de 2025
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Nas últimas semanas o acompanhamento do noticiário me trouxe repetidamente à lembrança O curioso caso de Benjamim Button, filme de 2008, dirigido por David Fincher, que narra a história de um homem que nasce idoso e vai rejuvenescendo ao longo da vida.

E como, parafraseando Millôr, livres associações são livres, me lembrei de um importante crítico de arte e excelente frasista carioca (quase um pleonasmo) que dizia, lá pelo final dos anos 80, que o Brasil era um país curioso, em que a maior sambista da história era portuguesa; o rei do rock tinha perna mecânica e o grande símbolo sexual era uma mulher trans. Para quem não se lembra ou nunca soube, o nome dela é Roberta Close. 

05.05.2022 - Lula e Haddad visitam a UNICAMP em Campinas e conversam com estudantes sobre defesa da democracia. (Foto: Ricardo Stuckert / Lula Oficial)

05.05.2022 – Lula e Haddad visitam a UNICAMP em Campinas e conversam com estudantes sobre defesa da democracia.
(Foto: Ricardo Stuckert / Lula Oficial)

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Na verdade, tudo isso é brincadeirinha perto do que as redes, mal chamadas de sociais, nos impingem todos os dias, especialmente vindo das também mal chamadas esquerdas. 

Então temos o curioso caso do presidente e do ministro da Fazenda que denunciam privatizações nocivas ao país; que enviam ao Congresso projetos de lei isentando trabalhadores do Imposto de Renda; que defendem internacionalmente a taxação das grandes fortunas; que combatem, no limite do possível, a corrupção privatista das emendas sigilosas; defendem a revisão da aposentadoria dos militares e dos super salários; propõem taxar os lucros das empresas de apostas, das fintechs e das operações com cripto moedas e são acusados… de neoliberais. 

O governo Lula envia ao Congresso, reiteradamente, propostas econômicas destinadas a cumprir um compromisso e uma condição. O compromisso é colocar três pratos de comida por dia na mesa de cada brasileiro. A condição é colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda. 

Essas propostas são continuamente rejeitadas, empurradas, distorcidas e objeto de chantagem recorrente, especialmente pela exigência de liberação das obscenas emendas secretas. Mas ainda hoje li mais um desses luminares de ONGs repetindo o mantra de que Lula III não tem programa nem marca. 

Também há aqueles, bem “de esquerda”, que fazem coro ao pessoal da Faria Lima e aos caciques da extrema direita pedindo a derrubada do “neoliberal Haddad”, assim como outros, ainda mais “radicais”, que dizem que a principal tarefa do presente é “derrubar o arcabouço fiscal”. Em bom vernáculo, derrubar Lula e Haddad. 

Devemos supor que os cérebros por trás desse curioso e brilhante plano têm na manga alguém mais capaz do que Lula de enfrentar a maré crescente do fascismo internacional em sua versão brasileira. Ou que, como se pode deduzir de uma leitura pra lá de curiosa do noticiário internacional, a revolução, socialista, molecular ou qualquer outro adjetivo que se queira, está logo ali depois da esquina. 

Os revolucionários do antineoliberalismo que propõem… (o que é mesmo que propõem? romper com o Congresso? convocar as massas a incendiar a Faria Lima?) não são os únicos a exibir orgulhosamente suas superioridades morais frente a Lula, que para eles é um personagem menor da história brasileira e da cena internacional. 

Há também aqueles e aquelas que denunciam reiteradamente o machismo do presidente que criou o Minha Casa Minha Vida e definiu que, em qualquer situação, o título de propriedade é da mulher; que deu impulso inédito às políticas públicas de proteção à mulher; que se nega a enquadrar Janja, como pedem muitas “feministas”, e insiste em dizer que o lugar da mulher é onde ela quiser; que isso vale para todas as mulheres e não exclui a sua. 

Ah, mas ele dá escorregadas incríveis, como dizer que Gleisi é uma bonita mulher; e não faltaram os incrivelmente progressistas a dizer que isso exigia uma retratação pública. Afinal os eventuais deslizes verbais de um senhor de quase 80 anos (e não creio que esse tenha sido um deles) são, para a verborragia das redes, muito mais relevantes que um conjunto de políticas públicas e ações concretas. 

O fato, inegável, é que Lula e seu governo estão sitiados. Pelo grande capital rentista que insistimos em apelidar de Faria Lima, com o efeito prático de esquecer que ele é internacional. Por um Congresso que é fruto da Lava Jato, do golpe de 2016 e da corrupção das emendas secretas e é dominado por bandidos de extrema direita que insistimos em chamar de Centrão. 

E finalmente – e aí vai o curioso do caso do Brasil – por um conjunto de pessoas, de maior ou menor inserção na vida social concreta, que insistem em expor sua frustração e raiva pelo fato de que Lula parece obstinado em cumprir o seu programa e não as fantasias individuais de cada um deles

E para não parecer que me excluo de toda essa curiosidade, confesso que estou (e não sozinho) há tempos buscando uma boa definição para essa pseudo esquerda, que já foi cirandeira, internética, de sofá e várias outras adjetivações. Foi preciso o aniversário de um livro do velho Ilitch Ulianov para lembrar que se trata simplesmente do antigo e conhecido esquerdismo. Que, repetido ou não como farsa, agora é só uma doença senil. 

(*) Carlos Ferreira Martins é Professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.