Quarta-feira, 26 de março de 2025
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Começamos 2025. Um ano novo, mas com cenário velho. O Brasil segue dominado pela burguesia interna e pelo imperialismo. Um gigantesco moinho de gastar gente: lucros astronômicos para as minorias e violência, destruição e luta pela sobrevivência para o povo trabalhador – as maiorias. A nossa classe vive uma grande desorientação estratégica, tática e política. Alguém pode dizer que sempre foi assim, que vivemos essa realidade desde sempre. Discordo dessa afirmação. Na luta de classes, enquanto não conquistarmos o poder político, isto é, fizermos a Revolução Brasileira, não temos a vitória nas mãos; nesse caso, por definição, ainda estamos numa situação de derrota. Mas nem toda derrota é igual.

Não é o mesmo estarmos numa situação com a classe trabalhadora mobilizada, pautando seu projeto de país, numa ofensiva ou mesmo conseguindo oferecer fortes resistências aos interesses imediatos e estratégicos da burguesia e do imperialismo, e o cenário atual. No começo dos anos 1960, na década de 1980 e hoje, vivemos no capitalismo dependente brasileiro – um cenário, portanto, de contínua vitória da burguesia –, mas, nos dois primeiros exemplos, a classe trabalhadora estava na cena política atuando enquanto portadora de um projeto de país, com independência de classe, projetando o futuro, pautando e colocando em disputa um outro Brasil.

01.05.2024 – Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante Ato Unificado em Comemoração do 1º de Maio, Neo Química Arena – São Paulo – SP.
(Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Um dos traços marcantes da conjuntura atual é que não temos a classe trabalhadora atuando enquanto sujeito político nacional, com independência de classe, forjando um projeto alternativo de país frente ao da burguesia e do imperialismo. Para efeitos didáticos, com algum simplismo, podemos dizer que o povo trabalhador brasileiro pode ser dividido em três grandes grupos: a) os em situação de atomização total, absolutamente desorganizados e alheios a qualquer tecido coletivo além da sua dinâmica familiar/vizinhança; b) os organizados em aparelhos de hegemonia controlados pela burguesia, ainda que normalmente se apresentem como apolíticos (pense, por exemplo, em igrejas evangélicas e ONGs assistencialistas); c) e os organizados por aparelhos de hegemonia de esquerda (usando aqui a definição mais ampla possível de esquerda), como movimentos sociais, partidos políticos, sindicatos, coletivos, associações, entidades e afins.

No grupo c), contudo, a força majoritária é do chamado progressismo, em particular o Partido dos Trabalhadores e as organizações políticas na sua órbita de influência. A chamada esquerda radical, onde me incluo, embora em crescimento, ainda é muito pequena e, no melhor dos cenários, tem capacidade de influir na defensiva, combatendo algum ataque liderado por governos progressistas – como o recente ataque ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) –, mas não consegue pautar um projeto na positiva, impondo uma agenda política aos progressistas.

A história recente desse campo progressista liderado pelo PT é um ótimo sintoma da tragédia brasileira. Sem intenção de resumir a história do petismo, podemos dizer que, depois da Carta ao Povo Brasileiro, no ano da eleição de 2002, Lula e o PT abrem mão de quaisquer compromissos reformistas e se comprometem a gerir o modelo neoliberal de reprodução do capitalismo brasileiro. A materialização da Carta ao Povo Brasileiro foi Henrique Meirelles (tucano e banqueiro) no Banco Central e Antonio Palocci no Ministério da Fazenda. Tudo podia mudar, menos o essencial. Todas as contrarreformas de Fernando Henrique Cardoso – como as privatizações, abertura comercial, tripé macroeconômico, financeirização da economia etc. – seguiram intactas, e não haveria um “cavalo de pau” na economia.

Essa opção do PT e do Governo Lula não foi apenas uma tática eleitoral ou uma escolha de governabilidade. Foi a consolidação de uma virada estratégica, com o petismo assumindo plenamente o lugar de “ala esquerda” do sistema político dominante. A lógica era simples: mais ou menos preocupação social, mais ou menos preocupação nacional, mais ou menos participação popular no governo, mas com os marcos estruturais do capitalismo dependente brasileiro mantendo-se os mesmos.

Com o passar dos anos, certos temas foram sumindo, debates proibidos e houve um rebaixamento teórico generalizado. Desapareceram do vocabulário dos progressistas palavras como imperialismo, dependência, luta de classes, soberania produtiva e tecnológica, integração latino-americana, democratização da mídia, poder popular etc. A dinâmica estabelecida é do cinismo eleitoral. Em época de eleição, tudo é prometido. Todos os debates que ficam adormecidos por quatro anos voltam com tudo, e são tiradas da gaveta as velhas ideias que poderiam começar a construir um Brasil novo. Passada a eleição, todas as promessas de campanha são tratadas não como um compromisso programático com o povo trabalhador e os eleitores, mas apenas como peças publicitárias, ditas a partir da indicação de um marqueteiro, o necessário para ganhar a eleição; e, agora, para governar, é indispensável esquecer tudo que foi prometido. A cada quatro anos temos um “esqueçam o que escrevi” – FHC tem muitos discípulos.

A depender da conjuntura, a desculpa para o estelionato eleitoral do momento muda. No passado, quando, por exemplo, Lula tinha 80% de aprovação, maioria no Congresso Nacional, a presidência da Câmara dos Deputados e o PT crescia eleitoralmente de forma consistente, a justificativa oficial era que o partido não tinha hegemonia ou maioria de esquerda na sociedade e não era possível pautar reformas e transformações substantivas só a partir do aparato institucional. Agora, com a situação desfavorável no aparelho do Estado burguês, em particular na Câmara dos Deputados, o “argumento” preferido é a ausência de maioria no Congresso. A lógica de fundo é escolher uma situação ideal para, a partir daí, começar a luta. Como essa situação ideal nunca chega – e nunca chegará, pois, no capitalismo, não existe situação ideal para a luta popular –, temos um eterno adiamento.

A partir disso, para justificar um supostamente ser de esquerda, mesmo sem a correspondência na prática política, temos que constantemente rebaixar o horizonte político, teórico e estratégico e ficar numa eterna espera messiânica de que um dia teremos uma “guinada à esquerda” de Lula e do PT. Em paralelo, frente à força da extrema direita, temos um apelo abstrato em defesa da democracia, instituições e do Estado de Direito. A legitimidade eleitoral, social e política do campo progressista é, no geral, dada para evitar um “mal maior” e, em ano eleitoral, excitar uma parcela da sua base com promessas de esquerda e da tal guinada – lembrem que em 2022 Lula prometeu, por exemplo, revogar a contrarreforma trabalhista, previdenciária, do ensino médio e o teto de gastos aprovado por Michel Temer. Desnecessário falar do destino dessas promessas passados dois anos de governo.

Em suma, seja numa perspectiva revolucionária ou reformista, a burguesia brasileira e o imperialismo não estão pressionados com um projeto alternativo de país. Salvo exceções, como a atuação do MST no campo brasileiro, a perspectiva dominante nas esquerdas brasileiras, lideradas pelo progressismo, é uma mera gestão da miséria que vivemos, buscando, no máximo, melhorar alguns índices e fazer políticas públicas cada vez mais limitadas e de baixo alcance. No final, essa ausência sistemática de outro futuro para o Brasil é funcional para a classe dominante brasileira e o imperialismo e também, por mais que pareça paradoxal para alguns, para o campo progressista: os dois ficam confortáveis com a gestão do existente.

(*) Jones Manoel é historiador, professor, mestre e doutorando em Serviço Social, escritor, educador, comunicador popular e militante comunista.