A pior crise capitalista em décadas não deixa rastros apenas na crescente instabilidade dos mercados, na falência de Estados e na tragédia de milhões de famílias arruinadas pelo desemprego. Ela acaba de fazer uma última vítima inesperada: a Ciência Econômica.
O discurso econômico dominante que remete a um mundo da fantasia em que prevalecem relações sociais harmoniosas e perfeita racionalidade dos “agentes”, onde o poder de mercado e as diferenças de classe são inexistentes, está sofrendo um ataque jamais antes visto.
Do conjunto de premissas extremamente restritas dos modelos econômicos que orientam nove entre dez presidentes de bancos centrais ao redor do planeta, uma em especial se destaca pela absoluta falta de realismo: a crença na auto-regulação dos mercados. Esta crença denota o aspecto visivelmente dogmático que assumiu a Ciência Econômica contemporânea. A qualquer sinal de desequilíbrio no funcionamento da economia, os culpados são invariavelmente o Estado e as instituições – sindicatos em primeiro lugar – que interferem de maneira indevida no livre jogo do mercado.
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Se liberal na concepção da organização econômica, a Ciência Econômica desta vertente dogmática – o que lhe vale, não à toa, o apodo de “ortodoxa” – se caracteriza por um conservadorismo extremo no que se refere à sua visão de justiça. Políticas que visem redistribuir a riqueza represada nas mãos de um punhado de cidadãos a favor da massa de miseráveis são atacadas sob o argumento de uma pretensa redução da eficiência econômica. É o fundamento científico perfeito para justificar o impressionante processo de concentração de renda, terra e riqueza pelo qual atravessa o planeta nestas décadas de neoliberalismo, a práxis política que deriva das premissas da Ciência Econômica dominante.
Os ares de cientificidade que a crescente matematização pretende atribuir à Economia ortodoxa não permitem mais disfarçar a sua natureza ideológica. Liberalismo econômico e conservadorismo político, que se materializam na conhecida receita ortodoxa de privatizações, desregulamentações e redução do orçamento social do Estado, repercutem diretamente na tendência atual de centralização de poder econômico nas mãos de poucos conglomerados e indivíduos. Pois não seria exatamente esta a questão estrutural na origem da crise?
Cresce, de fato, a suspeita em torno da existência de um vínculo entre a profundidade da ‘Grande Recessão’, iniciada em dezembro de 2007, e o modo como se pensa e se faz Economia. A absoluta falta de consideração por aspectos históricos, sociais, políticos e institucionais, e a consequente insistência em um modelo econômico abstrato cada vez mais distante de nossa complexa realidade, têm alimentado críticas há tempos, mas que encontram agora ressonância inédita dentro e fora da academia. Dentre os exemplos mais ilustres estão os verdadeiros libelos publicados por dois prêmios Nobel, Paul Krugman – que considera o momento atual uma “era das trevas da macroeconomia” –, e Joseph Stiglitz – para quem uma reforma econômica para tirar o mundo da crise não pode prescindir de uma reforma da própria Ciência Econômica.
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Os que ousam agora se levantar contra uma dominação quase que absoluta dos ortodoxos fazem coro, na verdade, a um movimento que se iniciou pela base, na década passada. Como um espectro, começaram a ecoar nos corredores da Sorbonne, a secular universidade francesa, vozes dissonantes brandadas por quem menos se esperaria: os alunos de graduação. A surpresa se explica pelo enfoque crescentemente técnico que o ensino de Economia vem assumindo nas últimas décadas, visando, nitidamente, atender à demanda do mercado financeiro e de grandes corporações por gerentes qualificados. Com isso, abandonou-se, gradativamente, a formação tradicional do economista, em que se estimulava o pensamento crítico e se enfatizava o estudo da contribuição dos autores clássicos (Smith, Ricardo e Marx), a tradição heterodoxa (Schumpeter, Keynes), bem como de matérias complementares, como a história econômica, a sociologia, a política.
O inconformismo dos estudantes franceses se materializou, no ano 2000, em um primeiro manifesto contra o que chamaram de ensino autista de Economia. O movimento da Economia Pós-Autista, como ficaria conhecido, tem como principal bandeira uma proposta de reforma curricular que reflita o pluralismo de paradigmas analíticos do pensamento econômico. Recebeu, progressivamente, o apoio fundamental de docentes, incluindo aí algumas celebridades do meio acadêmico, como Edward Fullbrook, James K. Galbraith, Deirdre McCloskey e Bernard Guerrien, que passaram a contribuir para uma revista eletrônica onde pode-se ler, desde então, análises sobre os problemas relacionados ao método dominante da Economia, a Post-Autistic Economics Review. A atual crise, a incapacidade dos economistas do mainstream em prevê-la e, sobretudo, saná-la, trouxe um novo fôlego para o movimento.
No Brasil, a repercussão ainda é tímida. Isto se explica talvez pelo peso da tradição do pensamento estruturalista, sob a liderança de Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares em nossa academia, cuja influência se faz notar, contudo, mais na graduação que na pós-graduação. O que coloca um dilema importante, pois as novas gerações de professores de Economia estão sendo treinadas de forma cada vez mais predominante em centros de pós com orientação conservadora.
Ainda assim, é digna de registro a insatisfação localizada de estudantes, que promovem, eventualmente, manifestações originais contra o pensamento único e o ensino de Economia “autista” no país. Como a que, em uma capital do Sul do país, para chamar a atenção dos limites do ensino com manuais, convenceu os alunos a abrir mão das aulas presenciais de uma disciplina, e mostrou que era possível ser aprovado sem assistir às aulas, estudando o conteúdo dos manuais por conta própria.
O uso disseminado de manuais terminará por tornar dispensável a figura do professor de Economia? Aparentemente, sim. Ao menos daquele professor que procura instigar a curiosidade no aluno em sua busca constante pelo conhecimento, pelo contraditório. Mas, certamente, para além da tragédia pedagógica que isto representa, o problema mais grave está no conteúdo destes livros-texto, repletos de uma visão de mundo abertamente partidária do laissez-faire, sem que se indique ao estudante as graves consequências sociais que um arranjo econômico liberal pode trazer.
Para citar um exemplo concreto, os manuais, sem apresentar evidências científicas, atacam duramente os sindicatos, cuja atuação é associada ao aumento da inflação, ao desemprego e ao retrocesso tecnológico nos setores em que se fazem mais presentes. Ao ignorar os estudos de economistas heterodoxos que apontam para a importância do sindicato na manutenção do poder de compra dos trabalhadores e na redução das desigualdades no interior dos setores econômicos, os manuais omitem informação e fogem covardemente do debate.
Treinados para enxergar a harmonia onde prevalece o conflito, para tratar como iguais os desiguais, e para acreditar que a oferta regula a produção, quando é na demanda que reside a chave da acumulação do capital, os economistas ortodoxos se mostram incapazes de antecipar as crises e compreender a sua real profundidade. O momento é o de se discutir abertamente com a sociedade sobre o tipo de ensino de Ciências Econômicas que necessitamos: o que ainda predomina, em formato pausterizado e distanciado da economia real; ou um ensino plural, interdisciplinar, em que se resgate a contribuição do economista para o desenvolvimento das nações.
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