Quarta-feira, 26 de março de 2025
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O desmonte do serviço público não é apenas um efeito colateral de ajustes econômicos, mas sim um projeto consciente de reconfiguração da sociedade. A deterioração das garantias sociais, a precarização dos servidores e a transferência de funções essenciais para a iniciativa privada fazem parte de uma estratégia calculada: reduzir o Estado ao seu mínimo funcional, tornando-o incapaz de atuar como mediador dos interesses coletivos. Esse movimento não é novo, mas sua execução atual adota um caráter performático, transformando a destruição da estrutura pública em um espetáculo que precisa ser aceito, assimilado e até mesmo celebrado.

O debate sobre o fim do Regime Jurídico Único (RJU) dos servidores públicos na Câmara dos Deputados ilustra bem essa estratégia. Ao fragmentar os vínculos funcionais e permitir contratações precarizadas, essa mudança compromete a estabilidade, que não é um privilégio individual, mas uma proteção contra a interferência política na administração pública. Os impactos não se limitam apenas aos servidores; eles reverberam diretamente nos serviços prestados à população. Se médicos do SUS, professores da rede pública e assistentes sociais passam a depender de contratos temporários e instáveis, sua capacidade de planejar e executar políticas públicas fica fragilizada e sujeita a interesses políticos momentâneos.

Nos municípios, essa lógica pode ter efeitos ainda mais desastrosos. Com liberdade para definir regimes de contratação, prefeituras sob pressão de interesses privados poderão substituir concursos públicos por contratações precárias, terceirizando serviços essenciais e comprometendo a continuidade de políticas de longo prazo. Isso significa que a qualidade do atendimento em escolas, postos de saúde e serviços sociais não será mais determinada pela qualificação técnica e pelo compromisso institucional dos servidores, mas sim pela rotatividade imposta por vínculos frágeis. O impacto será imediato: descontinuidade dos serviços, perda de memória institucional e aumento das desigualdades regionais, já que os municípios mais pobres terão ainda mais dificuldades para manter profissionais qualificados.

A médio prazo, essa precarização do serviço público levará cada vez mais profissionais qualificados para o setor privado ou para o exterior. Médicos, professores e pesquisadores buscarão mercados que valorizem sua formação, levando a uma fuga silenciosa de talentos que enfraquecerá a capacidade do Brasil de inovar e responder a crises. Além disso, no setor privado, a adoção de contratos flexíveis no funcionalismo servirá de referência para ampliar a precarização do mercado de trabalho como um todo, enfraquecendo sindicatos e dificultando a luta por direitos básicos.

Mas essa ofensiva não se restringe apenas às condições de trabalho. A destruição do serviço público é também um projeto ideológico. Assim como Trump e Musk nos Estados Unidos transformaram o desmonte do Estado em um espetáculo midiático, no Brasil, a precarização dos serviços públicos é acompanhada por uma guerra cultural que demoniza o funcionalismo e naturaliza a privatização de políticas públicas. Criam-se vilões – o servidor público é retratado como “privilegiado”, o Estado como “ineficiente” – e vende-se a ideia de que a única solução é entregar tudo ao mercado. No entanto, a experiência mostra que a privatização de serviços essenciais não leva a uma maior eficiência, mas sim ao aumento da exclusão e ao agravamento das desigualdades sociais.

A reforma trabalhista de 2017 e a reforma da previdência de 2019 seguiram essa mesma lógica. Foram apresentadas como soluções para modernizar a economia e garantir sustentabilidade fiscal, mas os resultados foram exatamente o oposto: um mercado de trabalho mais precário, aumento da informalidade, redução da arrecadação previdenciária e crescimento da pobreza. Agora, o mesmo argumento está sendo usado para justificar o desmonte do serviço público. Termos como “flexibilização”, “eficiência” e “modernização” são repetidos, mas na prática, isso significará apenas o aumento da desigualdade e o enfraquecimento das instituições responsáveis por mitigar seus efeitos.

Os impactos econômicos desse modelo são evidentes. O enfraquecimento do setor público reduz a capacidade do Estado de investir e desorganiza setores estratégicos da economia. Sem estabilidade funcional, projetos de infraestrutura, inovação e desenvolvimento regional ficam vulneráveis a ciclos eleitorais e pressões empresariais. No nível municipal, o colapso de serviços essenciais aumentará a dependência de contratos emergenciais e parcerias público-privadas desvantajosas, drenando recursos públicos para empresas que lucram com a escassez e a ineficiência planejada.

No plano político, essa ofensiva não é neutra. O desmonte do serviço público enfraquece a capacidade de organização coletiva e desmobiliza categorias fundamentais para a resistência democrática. A destruição da estabilidade dos servidores compromete a autonomia técnica das políticas públicas, tornando-as mais vulneráveis a interesses privados e à pressão do grande capital. Com o tempo, esse cenário criará um ciclo vicioso: menos servidores organizados, menor capacidade de resistência e mais ataques ao funcionalismo, até que o Estado se torne apenas um instrumento de interesses privados.

No campo cultural, a deslegitimação do serviço público altera profundamente a percepção do que é um direito. Se a precarização da educação, da saúde e da previdência passa a ser vista como algo inevitável, o próprio conceito de cidadania se transforma. A ideia de que serviços essenciais devem ser tratados como mercadorias, acessíveis apenas a quem pode pagar, passa a ser naturalizada. Essa mudança não acontece da noite para o dia, mas é construída por meio de uma “pedagogia do abandono”, em que o Estado deixa de ser visto como um instrumento de justiça social e passa a ser tratado como um obstáculo.

O que está em jogo aqui não é apenas o futuro do funcionalismo, mas uma transformação estrutural do papel do Estado. A questão central não é eficiência, mas sim a transferência do poder de decisão. Quanto mais o serviço público for enfraquecido, mais as decisões fundamentais sobre saúde, educação, transporte e segurança serão entregues a corporações e grupos privados, sem qualquer controle social. Isso não significa um Estado menor, mas um Estado a serviço de interesses específicos, onde o bem público deixa de existir como um espaço de construção coletiva.

Defender o serviço público não é um saudosismo estatista, mas um ato de resistência contra a captura do Estado por interesses privados. O Regime Jurídico Único, assim como a Constituição de 1988, não são obstáculos à modernização, mas garantias mínimas de que a administração pública não se transforme em um balcão de negócios. O que está em jogo não é apenas a condição de trabalho dos servidores, mas a própria possibilidade de um futuro onde direitos não sejam tratados como privilégios, mas como pilares de uma sociedade razoavelmente democrática.

(*) Ricardo Queiroz Pinheiro é bibliotecário, pesquisador e doutorando em Ciências Humanas e Sociais.