Há quinze dias, quando fizemos o balanço dos Jogos Olímpicos de Paris, um fato não poderia deixar, ironicamente, de ser destacado: a última edição dos jogos da era moderna, em vez de suspender guerras, na verdade, serviu para suspender a democracia do país sede. Emmanuel Macron insiste na tese de não nomear a maioria de esquerda no parlamento para o governo, muito embora sua própria coalizão tenha colaborado para isso.
Como sempre dizemos, os historiadores do futuro terão, talvez, dificuldade de explicar o que se passou na França de 2024. Sem necessidade alguma, após a derrota nas eleições europeias – algo que também aconteceu em 2019, mas não gerou a mesma reação de Macron –, o líder francês dissolveu o parlamento e, assim, chamou novas eleições, que seu bloco perdeu. Não havia motivo nem jurídico, muito menos político que movesse Macron nessa direção.
A extrema-direita se colocou como favorita, mas isso não aconteceu graças a uma barragem republicana, uma aliança entre centro e esquerda, na qual ambos os lados abriram mão de candidaturas no segundo turno das eleições para, conjuntamente, vencer a extrema-direita. A explicação é simples, uma vez que na França é possível que três ou mais candidatos disputem o segundo turno.
Existe golpismo no mundo rico sob uma presidência liberal?
Países ricos, sobretudo de maioria branca, ainda mais sob a liderança de partidos liberais, assumem para si um monopólio não apenas da democracia como, ainda, sobre o direito de dizer quem não é democrático. Emmanuel Macron na França é a quintessência disso, uma vez que ele rompeu com a centro-esquerda socialista e criou um partido próprio, claramente de viés liberal – que concorreu e venceu contra as demais forças.
Esse monopólio de dizer a verdade – a velha competência da veridicção – inspirou, por exemplo, presidentes do Partido Democrata dos Estados Unidos a iniciarem e manterem guerras sob pretexto humanitário. Mas ainda que em regimes nos quais não há equidade na disputa eleitoral, os ritos formais de votações em geral foram respeitados pelas forças liberais – que se colocaram prontamente contra qualquer suspeita ou outros modelos de democracia.
Um argumento muito simplório para rebater a acusação de golpe de Estado na França é de que a Nova Frente Popular (NFP), a coalizão de esquerda, só tem maioria relativa na Assembleia Nacional da França. De novo, é uma falácia, não só porque Macron já havia sinalizado que indicaria uma governo de extrema-direita caso ele fosse o mais votado em termos relativos nas eleições – o que, aliás, era o caso da sua maioria no parlamento anterior.
O que é pior é que, pelo acordo de retirada de candidaturas, muitos dos parlamentares do Ensemble (Juntos), coalizão de Macron, venceram por conta de desistências de candidatos da NFP. Um exemplo é da ex-primeira-ministra de Macron, Élisabeth Borne, que foi eleita graças a esse apoio contra um candidato da extrema-direita, e assim terminou em primeiro lugar – há muitos outros exemplos.
Mas o mais bizarro é que, numa reunião ministerial antes do segundo turno das parlamentares, Macron afirmou a política de nenhum voto à extrema-direita – o que dividia seu gabinete –, se beneficiando disso – ficando com mais cadeiras do que o previsto –, mas agora Macron se reúne com a extrema-direita, que lhe pede para não nomear um governo de esquerda. O que é outra insanidade no percurso sinuoso de Macron.
Um impeachment à vista?
A estratégia de Macron soa como a de quem errou, mas agora usa de todos os expedientes possíveis e imagináveis para não entregar o governo, talvez rachando a NFP, atraindo o Partido Socialista, ou ganhando tempo antes que a Constituição lhe permita chamar novas eleições – isto é, em meados de 2025. Mas a julgar por todos os movimentos de Macron, temos uma situação bizarra, na qual ele parece mais inclinado à extrema-direita.
A razão não é difícil de entender. Jean-Philippe Tanguy, homem forte das finanças do Reagrupamento Nacional (RN), de extrema-direita, é teórico da austeridade e do neoliberalismo. Nenhum problema, nenhuma contradição, com Macron, portanto. Mussolini nomeou o liberal Alberto De Stefani em 1922 para o ministério das Finanças italiano; Hitler indicou o liberal Hjalmar Schacht no comando das Finanças da Alemanha Nazista.
O fascismo clássico abre mão, quase sempre muito rápido, de suas convicções nacionalistas e desenvolvimentistas assim que percebe que pode chegar ao poder mais fácil e rápido por meio da banca. Bolsonaro e Guedes que o digam no Brasil. É o caso do RN, e por isso ele termina normalizado em escala mundial, ou mesmo no Brasil, como vimos recentemente, quando analistas brasileiros defendiam a normalidade de Le Pen.
Na dura realidade da política, os mercados trataram a nova encarnação da RN como algo mais normal do que a NFP, salvo talvez o Partido Socialista, que deve ser “trazido de volta” – e é ele, precisamente, o elo fraco da coalizão de esquerda, muito embora a liderança de Olivier Faure não permita, por ora, uma rendição completa. O gesto oportunista de Macron, como é óbvio, favorece a extrema-direita e enfraquece qualquer futura frente democrática.
Com efeito, se Macron não indicar um governo da esquerda vitoriosa, e sua bancada aprovar isso, tampouco ele conseguiria indicar um governo seu, que é apenas a terceira bancada da Assembleia Nacional. Tudo isso demandaria uma colaboração com a extrema-direita, o que seria totalmente escandaloso, o que é ainda improvável, mas não impossível – na medida que ele escolheu a esquerda como adversária preferencial.
Se for mesmo aberto o pedido de impeachment contra Macron, as cartas se abrirão definitivamente – e é mais provável uma não adesão da extrema-direita à proposta do que a deposição de Macron, mostrando quem é quem nesse jogo. Isso não interessa a Macron, que continuará sangrando, junto com seu campo político, para 2027; mas é como as coisas são. Dizer o quê?
Há um jogo tenso nos recônditos dos bastidores franceses, que é bastante confuso também. A França passou os últimos anos se sujeitando ao comando estratégico dos Estados Unidos, o que ela relutava em fazer. Se envolveu, ainda, em belas fricções com China e Rússia em razão dessa subalternização. E isso começa a alvejar sua segurança energética, mantida de forma espúria nas suas ex-colônias africanas.
No fim das contas, em um momento de exotização de países orientais, é um governo liberal modelo que, escancaradamente, desrespeita regras de um jogo que ele próprio convocou. É óbvio que isso não ganhará a manchete dos jornais tradicionais, mas não deixa de ser uma verdade que se impõe. Os destinos dessa crise em um dos grande motores da União Europeia é prenúncio de mudanças poderosas que, para o bem ou para mal, vão se operar.