Terça-feira, 15 de julho de 2025
APOIE
Menu

A provocação

Já na porta de saída da Casa Branca, no apagar das luzes de um melancólico mandato, o presidente estadunidense Joe Biden autoriza o presidente Zelensky a empregar os mísseis de alcance intermediário ATACMS no território russo. Até recentemente, era permitido seu uso apenas no território ucraniano, justamente para não mudar de patamar o nível de beligerância. A questão é que esse tipo de míssil necessita, para a determinação do alvo e para a navegação até ele, do controle de uma tecnologia que não está nas mãos dos ucranianos. Isso quer dizer que militares dos Estados Unidos e/ou da OTAN devem operar o lançamento e navegação do míssil, o que os responsabiliza diretamente  pelo ataque. Obviamente, os russos sabem disso. O primeiro lançamento de oito ATACMS foi no dia 21 de novembro; a maioria deles foi interceptado, e segundo o Ministério da Defesa russo, os destroços de um deles, atingido pela defesa aérea, caiu sobre um quartel militar em Bryansk, território da Rússia, produzindo um incêndio.

Grã-Bretanha e França também autorizaram o emprego de mísseis de médio e longo alcance para o interior do território russo. Obviamente, eles não teriam feito isso sem a autorização de Biden, tal a dependência da Europa com relação aos Estados Unidos. A Grã-Bretanha entregou dezenas de mísseis Storm Shadow de longo alcance adicionais para a Ucrânia, ante o esgotamento dos suprimentos anteriormente enviados para Kiev. Possivelmente tenham sido alguns desses Storm Shadow[1] os que foram empregados no segundo lançamento (23/11) contra o território russo, um dia após o ataque de Kiev à região russa de Bryansk usando os mísseis ATACMS fornecidos pelos EUA. A esta altura, ninguém duvida que isso se trata do início de uma guerra formalmente não declarada da OTAN contra a Rússia, embora nem todos os membros da OTAN estejam convencidos de que essa guerra seja uma boa ideia, com alguns rejeitando a possibilidade de ter que enfrentar militarmente a Rússia no campo de batalha e a maioria deles não fazendo sequer ideia de que isso pode significar o fim da Europa como a conhecemos.

A resposta

Numa entrevista ao jornal Rossiyskaya Gazeta, o ministro de Relações Exteriores russo, Sergev Lavrov afirmou que “Ataques com mísseis bem no interior do território russo são um passo de escalada […] Todos os nossos avisos de que essas ações inaceitáveis ​​serão recebidas com uma resposta apropriada foram ignorados.” Mais uma vez, as palavras do experiente diplomata parecem ter caído na desértica sensatez ocidental. Todavia, como uma confirmação da sua advertência, a resposta russa foi dada pela exibição de um inédito míssil batizado “Oreshnik” (avelã em russo). Sob a inocência desse nome, a Rússia apresentou um armamento que, pela sua velocidade, letalidade e manobrabilidade, o coloca no ápice da tecnologia da morte e que agora conta com um “exitoso teste de campo”, nas palavras de Putin.

Receba em primeira mão as notícias e análises de Opera Mundi no seu WhatsApp!
Inscreva-se

O presidente russo, Vladimir Putin, em janeiro de 2021.
(Foto: Kremlin)

O Oresnik literalmente caiu como um raio ou, melhor dizendo, como dezenas de raios paralelos e coordenados que atravessaram a distância de dois quilômetros entre as nuvens e o seu alvo num piscar de olhos (uma velocidade entre 10 e 13 Mach, segundo diferentes analistas) na madrugada de 21 de novembro. Conforme a vice-secretária de imprensa do Pentágono, Sabrina Singh, trata-se de um míssil balístico experimental de alcance intermediário “baseado” no modelo russo RS-26 Rubezh. Voando a uma velocidade dez vezes superior à que viaja o som (pode atingir até 13.000 km/h), carregando seis ogivas[2] orientáveis individualmente (que podem suportar explosivo nuclear), cada uma delas com até seis munições também manobráveis, esse míssil representou um brevíssimo e inédito espetáculo dantesco para os vídeos que conseguiram captá-lo. Suas ogivas foram dirigidas sobre a fábrica de armamentos Pivdenmach em Dnipro, no centro-leste da Ucrânia, ainda do período soviético, e que fora construída profundamente, como um bunker, para suportar até um bombardeio nuclear.

Resultado

Aparentemente essa resposta de Putin à provocação de Biden não era esperada pelo presidente estadunidense nem pelos líderes europeus, que permaneceram atônitos durante um tempo antes de começar a aumentar os decibéis retóricos. Seu silêncio é compreensível: por um lado, porque o alcance de um míssil intermediário, como definidos pelo extinto[3] Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INFT) fica entre 1.000 e 5.500 quilômetros. Isso quer dizer que um míssil Oreshnick poderia atingir qualquer capital europeia em poucos minutos e sem qualquer possibilidade de interceptação, dada sua velocidade e a navegabilidade. Por outro lado, porque a parcimoniosa gramática bélica de Putin teve um inequívoco alvo: a sensibilidade perceptiva da Europa e dos Estados Unidos. A advertência do líder russo foi clara: o envolvimento de qualquer país da OTAN contra a Rússia não mudará a situação da guerra, mas terá uma resposta contundente, imediata e sem possibilidade de defesa. Segundo Putin, não existe na atualidade nenhuma arma dessa capacidade letal e velocidade, nem armamento capaz de interceptá-la. Na dialética da espada e do escudo, que dinamiza o desenvolvimento tecnológico bélico, ainda não há escudo que consiga parar o golpe da espada que representa o Oreshnik.

Não obstante todas as advertências e mostras de poder da Rússia, os países do Ocidente ideológico parecem se encaminhar alegremente ao Armagedon com ritmo marcial. Uma resolução de 27/11 da Assembleia Parlamentar da OTAN solicitou o envio imediato de mísseis de médio alcance para Ucrânia, sabendo que isso pode significar uma retaliação russa indefensável no território europeu. Obviamente, essa resolução não é deliberativa e depende de uma decisão final do bloco, mas é significativo o insensato trinar dos seus falcões. É difícil saber se os líderes europeus não acreditam nas reiteradas advertências nucleares de Putin, se não se importam com o possível fim da vida humana ou, ainda, se padecem de uma dissonância cognitiva epidêmica. Neste momento de tensão nuclear no qual se debate o sistema internacional, qualquer erro de cálculo pode ser o último. 

As perguntas possíveis de serem formuladas neste momento são: qual é o sentido do presidente Biden comprometer os Estados Unidos numa guerra, agora inocultavelmente direta, com a Rússia? Essa infeliz decisão do presidente Biden, de suspender as restrições que limitavam o uso dos mísseis intermediários fornecidos à Ucrânia, teve como objetivo estratégico atingir a situação no campo de batalha ucraniano ou a finalidade política de complicar o próximo governo de Trump? Se fosse a primeira possibilidade, isto é, alterar a situação no campo de batalha, tudo indica que, se se modificou alguma coisa, foi para piorar a situação da Ucrânia, somando isso à possibilidade de ascender o conflito aos extremos, incluindo o nuclear e a Guerra Mundial. Se for a segunda hipótese, tampouco parece ter sido muito feliz, porque a formação do gabinete do futuro presidente parece indicar a construção de um muro, não apenas na fronteira sul, mas também com relação ao Deep State, onde se abriga o partido da guerra. 

A poucas semanas de deixar o poder, o presidente estadunidense provocou uma perigosa escalada da guerra na Ucrânia, com viés de Guerra Mundial, que parece ter como objetivo condicionar a continuidade dos combates para muito além do seu mandato. Isto poderia dificultar o cumprimento do compromisso eleitoral de Trump de acabar com as guerras. Mas, por outro lado, a racional tranquilidade com que Putin está retaliando os ataques de mísseis americanos e europeus no seu território, de forma suficientemente clara e ponderada, embora contundente, parece indicar que o líder russo aposta nesta derradeira jogada de Biden e pretende levar à guerra evitando danos maiores aos ucranianos até que Trump assuma o controle do governo dos EUA. O perigo é que os falcões sem garras da Europa não compreendam ou não queiram entender essa jogada e arrastem o mundo ao definitivo e radioativo campo de morte final.

(*) Héctor Luis Saint-Pierre é professor da Unesp, coordenador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e ex-diretor da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). É autor de “Max Weber: entre a paixão e a razão” (Editora Unicamp) e “A política armada: fundamentos da guerra revolucionária” (Editora Unesp).

Notas:
[1] O Storm Shadow é um míssil guiado com precisão e lançado do ar, com alcance de mais de 250 km (155 milhas), que está em serviço desde o início dos anos 2000.
[2]  A ogiva do Oreshnik alcança uma temperatura de 4.000 graus Célsius no momento do choque, transformando em pó tudo o que se encontra na zona de impacto.
[3]  Paradoxalmente, em 20 de outubro de 2018, durante o primeiro governo do presidente Donald Trump, que os Estados Unidos abandonaram o INFT, um dos mais importantes acordos de controle de armas assinado entre Washington e Moscou durante a Guerra Fria, para poder conter o crescimento da China.