Na reta final da campanha presidencial, um episódio deplorável no comício de Donald Trump, em Nova Iorque, ganhou destaque midiático e serviu como gatilho para uma série de expectativas que, nos instantes finais, animaram muitos corações progressistas como se fossem um passo decisivo para a vitória eleitoral de Kamala Harris. Durante o comício, um humorista racista, que deveria animar a plateia antes da subida ao palco do candidato republicano, fez a seguinte piada: “Há uma ilha de lixo boiando no Caribe, ela se chama Porto Rico”, em alusão ao território controlado pelos Estados Unidos da América (EUA) desde 1898, quando a antiga colônia espanhola foi abocanhada pela potência yankee no bojo de sua expansão imperialista ultramarina.
A esperança democrata foi grande, porém efêmera. Acreditava-se que a diáspora porto-riquenha residente em ‘estados-pêndulo’ cruciais para a eleição americana poderia se mobilizar para votar em Kamala Harris como resposta ao insulto proferido pela campanha republicana. A imprensa liberal-progressista apostou todas as fichas nessa cartada final. Mas a realidade foi outra: Trump não apenas se elegeu com ampla maioria no colégio eleitoral, como ganhou no voto popular e, segundo muitos analistas, recebeu o apoio crucial de eleitores latinos e muçulmanos em distritos-chave para o resultado vitorioso. A sólida certeza democrata sobre o apoio do eleitorado hispânico dissolveu-se no ar, mas as razões deste tropeço merecem algum comentário.
O racismo da campanha de Trump não é novidade, nem o sensacionalismo caricatural direcionado pelo ex-presidente, agora reeleito, aos imigrantes latino-americanos, que chegou a afirmar que estariam “comendo os gatos e cães das pessoas” no primeiro debate contra Harris. O curioso, portanto, é notar que mesmo diante de tanta xenofobia e instilação de ódio racial, Trump tenha conquistado apoio significativo de comunidades muçulmanas, hispânicas, asiáticas e, em alguma medida, negras também (ele venceu na Geórgia, por sinal).
Uma explicação possível para este paradoxo reside na hipocrisia dos democratas em relação à questão racial, aos direitos dos imigrantes e, claro, ao chauvinismo imperialista destilado pelos liberais “progressistas” que almejam recriar o mundo não-ocidental à sua imagem e semelhança, espalhando guerras por todo o globo.
O caso de Porto Rico chama atenção por sua perfídia. Trata-se de um “território” ultramarino ocupado militar e politicamente pelos EUA há mais de um século, mas que nunca foi incorporado como um Estado à federação estadunidense (como foi o Havaí, por exemplo, após a conquista militar que destituiu a monarquia havaiana). Por isso, seu status político permanece, na realidade, como o de uma colônia dos EUA, apesar dos esforços bem-sucedidos de Washington para retirar o nome do arquipélago da lista de “Territórios Sem Governo Próprio” da ONU.
Mas é exatamente isso que ocorre: os habitantes de Porto Rico são considerados cidadãos norte-americanos no sentido de poderem se alistar nas Forças Armadas (que maravilha!), mas não podem votar nas eleições presidenciais ou legislativas dos EUA e nem eleger representantes para o Congresso americano. Porto Rico não faz parte do colégio eleitoral. Um único cidadão, “comissionado residente”, vindo da ilha, tem o direito de ouvir as sessões parlamentares e, às vezes, pedir a palavra no Congresso. Mas não possui direito a voto nas sessões: é um ouvinte.
Assim, os porto-riquenhos não têm o direito de eleger seus representantes nem, portanto, de opinar verdadeiramente sobre as decisões e políticas públicas que recaem sobre suas próprias vidas. Os liberais-progressistas, que adoram levar democracia, mesmo à força, para longínquos rincões da humanidade jamais se preocuparam com os direitos civis e políticos daqueles seres caribenhos reduzidos a meros corpos que servem para ser produtivos para o capitalismo yankee, incluindo suas aventuras militares, mas que não merecem o status de cidadãos plenos. São, literalmente, “cidadãos de segunda-classe”. Mas quem se importa?
O Comitê Especial das Nações Unidas para Descolonização já exigiu dos EUA que “permita ao povo porto-riquenho decidir soberanamente” sua própria autodeterminação, mas o Congresso estadunidense se reserva o direito de ignorar todos os plebiscitos que acontecem na ilha, mesmo aqueles que não ameaçam os interesses da metrópole. As decisões sobre a economia de Porto Rico foram entregues a uma junta de credores privados nomeados pelo governo norte-americano: trata-se de uma ditadura econômica também. E quando os furacões do Caribe castigam a ilha, seus habitantes ficam dias à espera de socorro de “seu” país, que lhes deixa sem luz, água potável e medicamentos nas horas de emergência, até na capital, San Juan. Trump era o presidente quando a ilha foi devastada pelo furacão Maria, em 2020. Mas teria sido tão diferente caso houvesse um presidente democrata na Casa Branca? Vidas porto-riquenhas não importam: este é um dos poucos consensos bipartidários existentes em Washington.
Mesmo assim, o Partido Democrata estava seguro de que o voto dos imigrantes porto-riquenhos seria o passaporte para a vitória eleitoral. Justamente daquelas pessoas e famílias que fugiram de sua terra natal por conta das péssimas condições de vida impostas pela dominação colonial… Tinham a certeza de que a mera existência em suas fileiras de figuras como a deputada de origem porto-riquenha Alejandra Ocásio-Cortez (AOC) bastaria para assegurar a lealdade política daqueles imigrantes diariamente castigados pelo capitalismo racial yankee.
Uma vez mais, a mera representatividade – entendida no mais rasteiro sentido liberal – não foi suficiente diante de tamanha hipocrisia pseudo-progressista: até onde se saiba, AOC jamais fez uma proposta de lei ou campanha pública pela soberania do país de seus antepassados; nunca ousou desafiar o império em seus próprios termos e exigir que se leve democracia para a ilha também (e não apenas para o Afeganistão ou Iraque, onde muitos porto-riquenhos morreram pela bandeira estadunidense); e, principalmente, não é capaz de iniciar uma conversa sobre reparações coloniais. O máximo que conseguiu fazer foi propaganda sensacionalista com fotografias na fronteira com o México quando Trump era presidente, mas calou-se vergonhosamente sobre o tratamento vexatório e desumano sofrido pelas mesmas pessoas quando seu amigo Biden se elegeu.
O mesmo Biden que estragou o sonho caribenho dos democratas (por senilidade ou vingança, não se sabe) ao utilizar a mesma palavra – “lixo”– para descrever os eleitores de Trump na antevéspera da votação, num movimento que contrarrestou a maré democrata e deu novo ímpeto aos eleitores republicanos, anulando os possíveis efeitos da ofensa original sobre voto dos porto-riquenhos. Para eles, o insulto xenófobo do humorista de Trump pode ser menos desrespeitoso do que a audácia daqueles que insistem em falar em seu nome (coisa que Trump não faz), que lhes roubam agência e subestimam a sua inteligência ao acreditarem que os porto-riquenhos não sabem distinguir um interesse político mesquinho de um verdadeiro comprometimento com seu povo. Além de tudo isso, parte dos eleitores hispânicos compartilha valores conservadores com os republicanos em temas como aborto, identidade de gênero, educação sexual, ensino religioso (cristão) nas escolas públicas y otras cositas más…
O mesmo vale para o crescente eleitorado muçulmano que não apenas partilha de tais valores, mas também percebe que hoje em dia o Partido da Guerra se transladou dos Republicanos para os Democratas, levando à (não tão difícil) questão: é preferível ser insultado e banido de entrar nos EUA ou ter sua família e terra natal destruídas na Síria, Líbano ou Líbia por bombas progressistas americanas?
Trump, ao menos, promete a paz. Kamala Harris prometia levar democracia para todo o mundo (menos para Porto Rico), custe o que custar. Fechamos a conta?
Assim, não surpreende que os porto-riquenhos “residentes” nos EUA tenham falhado em sua tarefa de salvar o liberalismo progressista de si mesmo. Sua consciência política parece superior ao que dela se espera nos círculos democratas estadunidenses. Seu orgulho nacional não pôde ser instrumentalizado por quem tampouco se preocupa de verdade pelo que acontece, ou deixa de acontecer, no arquipélago ocupado pela Pátria da Liberdade. São residentes nos EUA e disfrutam de um passaporte americano, mas não se deixam enganar por quem sempre lhes ofereceu pouco mais do que migalhas: foi o presidente Wilson, um democrata, que outorgou esta cidadania de segunda classe aos porto-riquenhos em 1917, pouco antes de falar em “autodeterminação dos povos” (europeus) em seus famosos 14 Pontos. A ironia vem de longe, a hipocrisia também; assim como a resistência.
Hoje, o artista porto-riquenho chamado Residente, da banda Calle 13, é dos mais vocais críticos do imperialismo yankee em toda a América Latina e Caribe e, claro, especialmente em seu país. “This is not America”, diz ele, para os gringos, democratas ou republicanos, que acreditam que a Doutrina Monroe segue vigente até hoje ou que nossa imaginação latino-americana e caribenha não é capaz de ultrapassar a função caricatural de representar a “diversidade” quando na prática somos tratados como meros currais eleitorais.
Hasta la vista, baby. Não em nosso nome, não mais.
(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.