Terça-feira, 13 de maio de 2025
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“Pano velho não tem remendo.”
“Quem aceita presentes vende a sua liberdade.”
Provérbios populares portugueses

Estamos em uma situação na qual a discussão da tática para as eleições de 2026, embora importante e incontornável, não deve ocultar a necessidade de “abrir a mente”. Estratégia é, evidentemente, sempre importante. Mas há situações em que uma ponderação séria impõe um “momento” estratégia, ou uma reflexão de maior fôlego. Estratégia e tática são conceitos “importados” da elaboração militar para situar a relação entre os fins e os meios. Podemos abordar esta discussão em diferentes graus de abstração. Temos a necessidade de definir estratégia e tática para derrotar a extrema-direita. Devemos pensar estratégia e tática para responder, também, qual deve ser o programa da esquerda diante da crise do capitalismo ou projeto para o Brasil. Mas há uma dimensão da formulação de estratégia e tática que se desdobra das anteriores, e remete à necessidade de reorganização da própria esquerda. Sejamos honestos: não é somente o capitalismo que está em crise. A esquerda brasileira está em crise. Uma crise se abriu porque a estratégia lulista se esgotou. A última vez que este desafio foi colocado de forma incontornável foi em 1978/79, quando se precipitou a fase final de luta contra a ditadura. A ditadura entrou em crise, mas a estratégia dominante na esquerda, nesse momento, expressada pelo PCB, entre outros partidos, mergulhou, também, em crise. O desafio era: quais devem ser os instrumentos de luta para derrubar a ditadura? A esquerda estava na clandestinidade, e uma maioria aproveitava a expressão legal através do MDB. A onda grevista, o protagonismo de uma nova geração de líderes sindicais, a autoridade conquistada por Lula, entre outros fatores, favoreceu uma aposta na construção do PT que dividiu a esquerda, tanto as correntes moderadas como as mais radicais. Desde então, em um processo de quatro décadas de gênese e apogeu, com diversas crises, o campo PT/CUT e, desde a primeira eleição de Lula em 2002, o lulismo se afirmou como a principal corrente da esquerda brasileira. Mas, por variadas razões, é inescapável pensar e se posicionar sobre o pós-lulismo.

Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante entrevista coletiva. Rússia - Moscou. (Foto: Ricardo Stuckert / PR)
Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante entrevista coletiva.
Rússia – Moscou.
(Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Na tática, estaremos diante de dois perigos simétricos ou dois extremos, quando pensamos a reorganização da esquerda e as eleições de 2026. O primeiro e mais importante perigo é o “giro para o centro” que deve prevalecer no governo, quando a conjuntura impõe a emergência de um giro à esquerda, até por cálculo eleitoral. Depois de décadas de eleições, de dois em dois anos, do golpe institucional de 2016 e do mandato de Bolsonaro, já ficou mais que demonstrado que nenhuma transformação estrutural progressiva poderá acontecer, somente, através de eleições. Mas, uma transformação regressiva pode, sim. Uma derrota para o bolsonarismo, seja quem for o substituto de Bolsonaro, abre o caminho para uma derrota histórica: regressão de uma recolonização do país e a desmoralização de uma geração de esquerda. Se algo ficou claro depois da vitória de Lula em 2022, um impasse estratégico, é que precisamos ganhar tempo. Vitória eleitoral não será o bastante. Sem uma onda de lutas de massas de grande dimensão não será possível mudar a relação social de forças e derrotar o neofascismo. Mas não sabemos quando ela virá, porque não há um “sismógrafo” de terremotos sociais. Nesse contexto, vencer nas eleições em 2026 só é possível com Lula, com uma frente de esquerda e pior, até com unidade eleitoral com dissidências burguesas. Mas esta tática não autoriza a conclusão de que a estratégia seja a defesa de um programa de centro. Sem uma inciativa política de esquerda desde já, um ano e meio antes, não haverá mágica “lulista” que possa evitar o pior como ficou claro no balanço das eleições de 2024. Embora Bolsonaro mantenha, por enquanto, sua pré-candidatura, obstinadamente, e mesmo considerando o vexame da votação na Câmara de Deputados que blindou Ramagem, é consciente que será condenado e terá que indicar um candidato. Mas perpetua uma tensão que dificulta a construção da “Frente Ampla” anti-Lula, repetindo a tática que deu a vitória a Nunes em São Paulo. 

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O segundo perigo é a tentação “testemunhal” revolucionária que desconsidera a dramática imprevisibilidade do desenlace das eleições. Nesta chave faz-se o cálculo de que como haverá um segundo turno, no primeiro turno se impõe a necessidade de uma candidatura de esquerda radical, para depois chamar ao voto em Lula, seja contra quem for. Mas desprezam a imensa dificuldade deste giro. Uma candidatura de esquerda no primeiro turno terá que se diferenciar, frontalmente, de Lula, durante meses e de forma muita mais crítica, áspera e ríspida do que em 2022, porque quem estará em 2026 no Planalto é Lula, quem estará na oposição será o bolsonarismo. Fazer o giro para o apoio depois, em duas semanas, será quase impossível. O paradoxo é que, ainda que seja provável que Lula assuma a candidatura à reeleição, embora permaneça um grau de incerteza, o que é mais do que provável é que, como em 2022 haverá várias, duas ou até três (PSTU, UP, talvez PCB e até o PCBr, se legalizado) candidaturas superrevolucionárias. 

O futuro da esquerda, quando pensamos a estratégia, não pode ser diminuído ao apoio da candidatura de Lula. Devemos defender Lula nas eleições, por suposto. Mas o futuro passa pela defesa de um programa que vá além do gradualismo lulista. Não se reduz, tampouco, à discussão de quem será a liderança na etapa pós-Lula. Vai muito além de uma disputa entre Haddad ou Boulos, João Campos, Flávio Dino, Gleisi Hoffman, ou outra liderança, porque exige um projeto que corresponda à etapa histórica de luta contra o neofascismo. A extrema moderação do lulismo e, também, do PT não respondem aos desafios impostos pelo perigo bolsonarista. A questão vital é qual deve ser este novo programa. Da maior ou menor clareza deste debate dependerá o futuro da esquerda e da estratégia da revolução brasileira. Crises não nos faltarão. Elas exigem paciência histórica. O capitalismo não vai fazer do Brasil um país melhor e menos desigual. Mas a questão de todas as questões é saber quais propostas apresentamos como soluções para a crise que virá, ou seja, qual deve ser o novo programa. Só que um programa sem um instrumento de luta forte que o defenda são somente ideias. Sem boas ideias não é possível vencer, mas não são o bastante. A construção de um novo instrumento só será possível com uma unificação de forças de esquerda que hoje estão dispersas.

Resumo da ópera. O futuro da esquerda depende de fatores objetivos, em especial, da maturação de uma onda de mobilização e disposição de luta mais elevada nos movimentos sociais: sindical e feminista, negro e LGBT, ambiental e camponês, estudantil e popular. Sem esta inversão clara na relação social de forças até o destino da luta contra a extrema-direita permanece incerto. No terreno da tática o desafio é vencer as eleições e ganhar tempo, não desconsiderando a presença de Trump na Casa Branca. Mas será indispensável lucidez estratégica da necessidade de um novo instrumento de luta superior a todos os partidos, movimentos e correntes atuais. Esta construção não é possível sem luta política. A disputa do período pós-Lula, embora contido, publicamente, já começou. Ela se expressa de diferentes formas. Até nas divisões no interior da CNB, a corrente majoritária do PT, na disputa do PED de julho, apesar do apoio de Lula a Edinho, o ex-prefeito de Araraquara, com o lançamento da pré-candidatura de Quaquá, o pitoresco prefeito de Maricá no Rio de Janeiro, de Romênio Pereira, de Valter Pomar e, sobretudo, de Rui Falcão, que já foi presidente do PT, entre 2011/17. Mas o terreno de luta sobre a estratégia para o pós-lulismo não se reduz ao desenlace da luta interna no PT. Tampouco se deve diminuir sua importância. Ela se dará, também, exterior ao PT, Os ritmos serão exploratórios e avançaremos por aproximações sucessivas. A inércia, uma força que nunca deve ser subestimada, porque repousa em interesses consolidados, favorece uma solução de continuidade: a preservação de um projeto de reformismo fraco e lento gradualismo negociado. Provavelmente, surgirão, também, projetos ainda mais moderados que reagruparão forças e lideranças, que já se expressam quando se considera a possibilidade de, dependendo das circunstâncias, Lula não concorrer, e apoiar uma candidatura “ao centro”. Mas devemos alimentar a esperança na aposta de uma reorganização que passa pela convergência à esquerda de uma diversidade de forças e militantes com presença nos movimentos sociais mais dinâmicos, e um espaço que associe a combatividade da esquerda do PT, a implantação social de movimentos como o Brasil Popular, o realismo revolucionário do campo majoritário do PSol, e a militância engajada na construção do plebiscito popular de 2025. E quem mais vier.

(*) Valério Arcary é historiador e professor titular aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.