A guerra entre a Rússia e a Ucrânia está perto de completar três anos, e o retorno de Donald Trump à Casa Branca tem sido considerado o mais concreto fator de mudança desde que o conflito foi deflagrado, em 24 de fevereiro de 2022. As posições públicas do próximo presidente norte-americano deixam claro a sua contrariedade à continuidade da ajuda dos Estados Unidos ao esforço de guerra da Ucrânia, que já ultrapassou os 100 bilhões de dólares. Em campanha, Trump chegou a dizer que encerraria o conflito em 24 horas. Dificilmente isso ocorrerá, mas uma mudança na abordagem dos Estados Unidos em relação à guerra é bastante provável.
Após a vitória de Trump, o presidente russo Vladimir Putin e o ministro de Relações Exteriores Sergei Lavrov afirmaram mais de uma vez a disposição da Rússia em negociar o fim da guerra com o novo presidente dos Estados Unidos. Mas também deixaram claro que Moscou não abrirá mão dos termos apresentados por Putin em junho de 2024, considerados pelo Kremlin como indispensáveis para alcançar um acordo de paz efetivo e duradouro. Essa posição assertiva da Rússia está respaldada pela realidade no campo de batalha e por suas condições políticas e econômicas internas.
Ao longo do último ano, o cenário geral se tornou ainda mais favorável para a Rússia. Enquanto a Ucrânia enfrentava dificuldades em obter financiamento e recrutar mais pessoal, o que gerou constrangedoras queixas públicas de Zelensky sobre a falta de apoio para lutar contra os russos, as tropas russas avançaram de maneira constante no Donbass, no leste do país, e passaram a controlar cidades estratégicas para o suprimento do exército ucraniano. Nem mesmo a ofensiva surpresa da Ucrânia na região de Kursk, dentro das fronteiras internacionalmente reconhecidas como parte da Rússia, e a autorização para usar mísseis de longo alcance na profundidade do território russo foram capazes de reverter o quadro geral do campo de batalha. Em outubro passado, a Rússia fez os maiores ganhos territoriais desde o verão de 2022, enquanto as linhas de defesa da Ucrânia cediam e seus ganhos eram muito limitados.
Além disso, os objetivos de isolamento político da Rússia no cenário internacional e a asfixia financeira e econômica através da imposição de sanções como forma de alterar o curso geopolítico do país não foram bem-sucedidos. As dificuldades encontradas pela Rússia, desde a forte desvalorização do rublo até o desabastecimento de itens do setor automobilístico, foram de alguma forma contornadas. Tampouco as restrições impostas pelos Estados Unidos e os países ocidentais foram capazes de expulsar a Rússia do mercado global de energia, embora as receitas oriundas da venda de petróleo tenham sofrido queda, uma vez que Moscou se viu obrigada a reduzir o preço do barril para penetrar em novos mercados (China, Índia e a Turquia, principalmente) e atender às exigências das seguradoras internacionais. Mas as sanções não foram capazes de reduzir a sua capacidade de produção do óleo e seus derivados. A desconexão dos bancos russos do sistema de pagamentos internacionais Swift e o congelamento dos ativos russos depositados em bancos ocidentais geraram grande expectativa de impactos macroeconômicos negativos no curtíssimo prazo, mas o Fundo Monetário Internacional precisou rever suas projeções mais rápido do que se esperava. A economia russa não “derreteu”, como muitos analistas previram.
Ao não comprometer de forma severa a atividade econômica da Rússia, as sanções falharam em mudar o curso de sua política externa e em promover uma mudança de regime no país. Em março de 2024, Putin foi reeleito em uma vitória acachapante, revelando considerável coesão da sociedade russa e unidade nacional em torno de seu projeto de país e a maneira como tem conduzido a guerra. O isolamento internacional também não chegou a Moscou, embora a mídia ocidental insista que ele seja uma realidade.
O conflito, que está sendo travado em solo ucraniano como resultado de uma crise que tem suas origens na Revolução Laranja, de 2004, é também o sintoma mais grave da rivalidade entre a Rússia e os Estados Unidos, adormecida nos anos 1990 e renascida nos primeiros anos do século XXI. A guerra na Ucrânia marca uma forte deterioração das relações entre os dois países, com tensões profundamente arraigadas e desconfianças mútuas.
E é justamente pelo fato de que o atual conflito na Ucrânia represente o ponto mais alto dessa rivalidade e envolva questões estruturais e estratégicas intimamente ligadas com a manutenção da hegemonia dos Estados Unidos que Donald Trump não pode encerrá-lo em 24 horas. Entregar uma vitória fácil para a Rússia é admitir uma nova realidade na arquitetura de segurança da Europa e, como pontuou Victoria Nuland, dar um presente para Putin.
Alguns analistas apostam que a estratégia do novo governo norte-americano será cortar imediatamente a ajuda financeira e militar para Ucrânia e entregar a vitória para a Rússia. Além do alívio financeiro, Moscou seria atraída para a esfera de influência dos Estados Unidos, abandonando, de forma parcial ou total, a parceria estratégica com a China.
Essa pode ser uma boa saída se a avaliação for de que ainda é possível afastar os russos dos chineses e, no mínimo, neutralizar a Rússia diante da confrontação entre os Estados Unidos e a China e, com sorte, aproximar o Kremlin da Casa Branca. Nos dois casos, uma tarefa quase impossível e uma leitura limitada e ingênua.
Poucos dias antes de explodir a violência no Donbass e as tropas russas invadirem a Ucrânia, Putin e Xi Jinping se encontraram e anunciaram uma “parceria estratégica sem limites” entre Rússia e China. Os dois países estão entrelaçados bilateralmente e sob um guarda-chuva institucional multilateralizado cada vez mais sofisticado e que se apresenta como alternativa à hegemonia norte-americana, suas regras e instituições internacionais. Além disso, há uma visão comum entre a China e a Rússia sobre questões de segurança internacional e o papel estrutural que os Estados Unidos desempenham sobre elas, desde aquelas que os russos e chineses estão envolvidos diretamente, como a guerra na Ucrânia e Taiwan, até os conflitos na Síria e o genocídio em Gaza.
Conceder tão facilmente uma vitória em uma guerra que Moscou considera como “existencial”, é contribuir para alterar a posição da Rússia em um importante tabuleiro geopolítico. O que pode ter impactos na própria posição dos Estados Unidos e nas capacidades econômicas, financeiras, militares e políticas de sua hegemonia. É um jogo arriscado para a Casa Branca.
Mas Trump não quer mais bancar a aventura dos Democratas na Ucrânia. Ainda não há nada formalizado, mas os rumores indicam que a proposta inicial dos Estados Unidos seja de um cessar-fogo e congelamento por 20 anos das tratativas que envolvem a entrada da Ucrânia na OTAN. Sobre isso, Lavrov foi absolutamente claro: o cessar-fogo é um caminho para lugar nenhum e Moscou entende que seu objetivo é ganhar tempo para continuar inundando a Ucrânia com armas.
A Rússia quer um tratado de paz. E a paz para a Rússia só pode ser obtida com as garantias de segurança já conhecidas: a Ucrânia não deve ser incorporada à OTAN, deve ter suas capacidades militares limitadas e assumir um status de neutralidade.
Diante desse xadrez, o cenário mais provável e realista é que a mudança de abordagem que muitos esperam por parte dos Estados Unidos seja a transferência para os países europeus de parte substancial dos custos da guerra. Se estes últimos estarão dispostos a se comprometerem ainda mais com as perdas da Ucrânia e terão capacidades financeiras e políticas para assumir esse fardo, é uma outra história.
(*) Rose Martins é analista internacional e pesquisadora, formada em Relações internacionais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e mestra em Economia Política Internacional