O Brasil parou, em pleno Carnaval, para assistir a cerimônia do Oscar em praças públicas como no Pelourinho, em Salvador, onde os foliões dividiram o cinema, com blocos e fantasias. Esse parece um feito inimaginável, em um país que há quatro anos tinha sido extinto o Ministério da Cultura.
Hoje, além de ter trazido um Oscar para casa com Ainda Estou Aqui, e de ter entrado para a história com a segunda atriz latina indicada, entre apenas seis nesses 97 anos de premiação, o Brasil esteve na lista de três prêmios cobiçados: Melhor Filme, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz Principal.
Mais do que gosto de Copa do Mundo, o país celebrou uma atriz nem um pouco deslumbrada, fora dos padrões estereotipados da indústria do cinema e afiadíssima diante de todos os holofotes, surpreendendo os entrevistados a cada desconstrução das perguntas prontas.
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Não saberemos qual o discurso faria Fernanda Torres se subisse naquele pódio com a estatueta, mas podemos imaginar que iria além do filme que representava, sem passar pano para ditatura militar que durou 21 anos no Brasil e foi financiada, como não é novidade para ninguém, pela indústria armamentista e os governos dos Estados Unidos, além de propagandeada pelos estúdios dos cinemas norte-americanos.
Na mesma semana em que Trump tenta anexar as terras e minérios da Ucrânia na mão-grande, em um ato do velho colonialismo televisionado, me parece simbólico termos novamente ficado quase lá, nos colocando como espectadores diante de discursos água com açúcar, com cheiro de naftalina em mais um vestido longo rosa bebê.
O não-prêmio para Fernanda Torres nos deixou com um gosto amargo e nos faz pensar quais os papeis estão escritos para determinados “atores” e “atrizes” no mundo do showbusiness.
Mas os discursos não foram todos do tipo do bom-mocismo. A Melhor Atriz “coadjuvante”, Zoë Saldaña, foi bem direta ao ocupar o palco incluindo as mulheres da sua família para, através delas, falar por todos os imigrantes que vivem mais um momento de trevas dos Estados Unidos.
“Minha avó chegou nesse país em 1961, eu tenho orgulho de ter sido uma criança filha de imigrantes, com muitos sonhos e trabalho, sou a primeira americana de descendência da República Dominicana a receber um Oscar e não serei a única”. Zoë lavou nossa alma.

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Zoë gigante, como as nossas Fernandas, não se intimidou na onda do cancelamento de Emília Perez, o filme que ela representou, quando disse que via o filme não pelo olhar de um país, mas pela amizade entre quatro mulheres tão diferentes.
No seu discurso, Zoë reafirmou a sua língua materna, o espanhol, como também lembrou Fernanda Torres, sobre o português, tão pouco mundialmente falado, mas que o cinema, como a nossa música, tem o poder de despertar o desejo muito além do “bom dia” e do “obrigada”. Em momentos de reconstrução de um país, como o que o Brasil atravessa atualmente, é compreensível que nos voltemos para o orgulho nacional.
Mas não nos esquecemos que a arte não vive de fronteiras. O mercado está sempre nos jogando para essas prateleiras, porém, o cinema, com a sua vocação transnacional, existe para balançar as estruturas. Mesmo que pelas beiradas, como fez Zoë Saldaña, a nos representar, nós os não-americanos, os não-europeus, os não-colonialistas.
A noite do Oscar ainda seria salva por dois documentaristas “estrangeiros”. Premiados pelo filme No Other Land (Sem Chão, por seu título em português), eles trouxeram a realidade da Faixa de Gaza para o tapete vermelho. Fiquemos com essa frase: “Enquanto ele (Basel Adra, o realizador palestino) não for livre, eu (Yuval Abraham, o co-realizador israelense) não serei livre”. É para esse mundo internacionalista e soberano que o Oscar ainda não está preparado.
* Liliane Mutti vive entre o Brasil e a França. Com cinco filmes lançados (‘Miúcha, a voz da Bossa Nova’, ‘Elle, Marielle Franco’, ‘Madeleine à Paris’, entre outros), ela é conselheira da BRAVI – Brasil Audiovisual Independente – para coprodução internacional Brasil-Europa. Atualmente, preside a Ciné Nova Bossa, associação francesa brasilianista dedicada aos encontros entre o cinema e outras artes