Nas eleições de 2022, fomos muitos os analistas que insistimos que Bolsonaro tinha um plano A e um plano B. O plano A era vencer as eleições. O plano B era dar um golpe. O plano A implicava tensionar a institucionalidade por meio de um uso turbinado da máquina pública, tendo como fiador o bom e velho centrão do sistema político. O plano B envolvia uma ruptura mais radical, uma “virada de mesa” que era exigida pelo núcleo duro do bolsonarismo, alimentada pela base da caserna e estudada com cautela pela cúpula dos militares.
Cumplicidades a parte, sobretudo depois de 30 de outubro de 2022, a base de apoio de Bolsonaro – que conforma o amplo campo do bolsonarismo – claramente se dividiu entre um setor ligado à direita tradicional, articulado essencialmente ao sistema político e adepto da tática 2016 (golpe por dentro da ordem) e um setor ligado à extrema-direita global e adepto da velha tática 1964 atualizada no assalto ao capitólio (golpe, se preciso for, para além da ordem).
Dois anos depois, com Bolsonaro inelegível, mas ainda popular, o bolsonarismo segue dividido.
De um lado, a direita tradicional que já embarcou na candidatura Tarcísio e quer, em 2024, fazer o maior número possível de prefeituras para enfrentar Lula em 2026. De outro, o núcleo duro do bolsonarismo que quer vencer as eleições de 2024 para aumentar a pressão sobre o Judiciário e seguir sonhando com uma anistia ampla, geral e irrestrita que permita a Bolsonaro ser candidato a presidente em 2026.
O objetivo de curto prazo, nos dois casos, é o mesmo, mas o horizonte de médio prazo é radicalmente diferente. No universo da direita, essa divisão é um tabu: todo mundo sabe que existe, mas quase ninguém a enuncia abertamente. Mas o fato é que, para quem analisa as eleições com essa lente, a cisão tática salta aos olhos.
E em nenhum lugar ela é mais evidente do que na maior cidade do país. Não é por acaso que São Paulo é, hoje palco não só dá polarização esquerda x direita, mas também de um duro embate que separa o bolsonarismo conservador da via Ricardo Nunes do bolsonarismo radical da via Pablo Marçal.
Bolsonaro, em 2024 como em 2022, faz jogo duplo, sem ser isento. Acena hora para um, hora para outro, fingindo se equilibrar com um pé em cada canoa, enquanto move peças para fortalecer a ala mais radical.
Concretamente, sob pressão do sistema político, Bolsonaro reafirma seu compromisso com Nunes, sem grande entusiasmo. Os fiadores dessa aliança falam por si: Valdemar Costa Neto, do PL; Ciro Nogueira, do PP; e Tarcísio, do Republicanos, querem amarrar o bolsonarismo a Nunes, isolando, de uma tacada só, Marçal e Bolsonaro. Tende a dar certo tanto quanto deu certo, em 2022, a tentativa desse mesmo setor de segurar o impulso de golpista Bolsonaro, no melhor estilo “você finge que me ama e eu finjo que acredito”.
Mas enquanto o teatro da direita tradicional corre solto em torno de Nunes, turbinado, em 2024 como em 2022, pelo uso indecente da máquina pública, o núcleo duro do bolsonarismo vai se pondo em movimento para fortalecer a candidatura Marçal. Para isso, mobiliza seu apito de cachorro mais batido e mais eficiente: o masculinismo.
Exatamente como em 2018 e em tantos outros momentos desde então, são os homens mobilizados, especialmente os homens brancos mobilizados, os primeiros a se agrupar em torno das propostas mais radicais do bolsonarismo. Para isso, é fundamental anunciar “o absurdo”: atacar as mulheres, reafirmar a estrutura patriarcal, os destinos naturais de gênero e, sobretudo, defender a liberdade de expressão como liberdade de agressão. Nesse sentido, é fundamental entender que o estilo agressivo de Marçal nos debates, elogiado por todos os Bolsonaro, do zero-zero ao zero-quatro, tem como principal objetivo reagrupar a tropa em torno de um estilo masculista que é, ao mesmo tempo, uma performance e um chamamento ao núcleo duro bolsonarista.
Como uma força radioativa, é esse núcleo duro que vai se agitando e contagiando outros setores sociais, contando, para isso, com uma arma nova cujo impacto está para ser testado: uma mulher negra como vice.
Também joga a favor de Marçal toda a rede de comunicação bolsonarista, controlada diretamente pelo núcleo duro mais radical do bolsonarismo, que a mantém propositalmente fora do alcance dos líderes do centrão do sistema político. Essa rede está em movimento há meses e já conquistou, para Marçal, 29% dos eleitores de Bolsonaro na capital.
Nada disso é feito às claras. Ao contrário. Bolsonaro faz gênero. Literalmente, inclusive. Elogia Marçal exatamente no tom que sua base entende, o chamando de “inteligente”, manda seus filhos fazerem indicações ainda mais diretas e, até quando parece atacar o coach, o faz mandando recado para sua base: ao lembrar que Marçal pediu seu apoio, Bolsonaro estava, justamente, anunciando a seus apoiadores que e ele é um dos seus.
Teatros e jogos de cena à parte, o essencial é reconhecer que em 2024, como em 2022, Bolsonaro tem um plano A e, sobretudo, um plano B. B de Bolsonaro. Alguma dúvida de qual é sua prioridade?
(*) Maria Carlotto é professora de Sociologia e Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC.