A decisão de Joe Biden de abandonar a corrida presidencial estadunidense redirecionou os holofotes da política para o quintal democrata. Influenciado diretamente pela mídia hegemônica global, esse frisson em torno das aventuras e desventuras da dupla Biden-Harris deixou pouco espaço para o discurso de Donald Trump no encerramento da convenção republicana em Milwaukee.
Porém, como não é sensato subestimar a extrema direita, especialmente nos Estados Unidos, o discurso de Trump da última quinta-feira merece máxima atenção. E não só porque foi o primeiro depois do atentado da Pensilvânia ou porque marcou o lançamento oficial de sua candidatura à Casa Branca diante de uma plateia embevecida pelo espetáculo de luz e som do “political showbusiness” neofascista cada vez mais naturalizado.
Analisar o discurso se faz importante porque, nele, um Trump abaixo do seu tom usual falou por mais de uma hora, dedicando um tempo considerável, na parte final, à apresentação do seu plano de governo.
De fato, o discurso teve duas partes.
Na primeira, que merece ser lida na íntegra, Trump sobrevoou temas da política: agradeceu aliados flertando sempre com o auto-elogio, ensaiou sem muito sucesso um tom pacificador de união nacional, relatou detalhadamente, entre o messianismo e a galhofa, o atentado sofrido dias antes, apresentou seu candidato a vice como um ex-adversário que se rendeu à inevitabilidade do sucesso do projeto Maga (Make America Great Again) e, sobretudo, atacou o Partido Democrata, a gestão Biden, a justiça e todo o “sistema” que, em vão, o persegue em nome da “democracia”, lembrando, ao final, que é ele, Trump, “quem na realidade está salvando a democracia para o povo do nosso país”.
Foi o mote da “defesa do povo” que deu a deixa para Trump, na sequência da parte “política” do seu discurso, enveredar para uma síntese da sua “visão de nação” e, consequentemente, do seu projeto de governo. Nessa síntese de projeto, o ex-presidente dedicou-se longamente aos objetivos econômicos e (geo)políticos do seu futuro governo.
Começou por defender de maneira um tanto desorganizada seu mandato à frente da Casa Branca, lembrando o quanto sua “magnífica” gestão foi profundamente afetada pela covid-19, que atribuiu, mais uma vez, à sabotagem chinesa. Foi a China que, segundo Trump, minimizou o impacto de suas “incríveis” políticas: da derrota do Estado Islâmico ao “maior corte de impostos da história”, passando pelo direito de pacientes “tentarem” usar medicamentos não-autorizados ou ainda sem comprovação científica (a fosforamida não é uma jabuticaba nacional).
Mas Trump rapidamente deixou o passado para trás para falar do futuro, que apresentou nos seguintes termos: “Sob nossa liderança, os Estados Unidos serão respeitados novamente. Nenhuma nação questionará nosso poder, nenhum inimigo duvidará de nossa força. Nossas fronteiras estarão totalmente seguras, nossa economia vai disparar”
Para atingir esse futuro “great again”, de coloração imperial, os Estados Unidos precisariam, segundo Trump, enfrentar três grandes crises:
1. Uma crise inflacionária “que está tornando a vida inacessível, devastando a
renda das famílias trabalhadoras e de baixa renda e esmagando, simplesmente
esmagando, nosso povo como nunca”;
2. Uma crise de “migração ilegal” que consiste na “invasão maciça em nossa fronteira sul que espalhou miséria, crime, pobreza, doença e destruição para comunidades em todo o nosso país”;
3. Uma crise internacional “como ninguém nunca viu”, com conflitos em Rússia- Ucrânia, Oriente Médio, China-Taiwan, levando o mundo “à beira da Terceira Guerra Mundial, e esta será uma guerra como nenhuma outra”.
Para tanto, Trump e a extrema direita estadunidense têm um plano.
“Primeiro, devemos conceder alívio econômico aos nossos cidadãos. A partir do primeiro dia, vamos reduzir os preços e tornar a América acessível novamente. Ela não está acessível no momento e as pessoas não podem viver assim.”
Para controlar a inflação, que ganhou grande espaço no seu discurso, Trump apresentou duas medidas emergenciais: baixar as taxas de juros e reduzir drasticamente os custos de energia.
Para baixar juros, Trump não tem uma rota certa, mas sugeriu que pretende fazê-lo reduzindo a dívida de U$36 trilhões dos Estados Unidos por meio, sobretudo, do corte de gastos e da atração de investimentos produtivos. Já para reduzir os custos de energia, Trump sabe perfeitamente o que fazer: “Drill,baby, drill!”. Retomando um mote republicano da campanha de 2008, o candidato propôs perfurar poços de petróleo e gás Estados Unidos afora para conseguir “ouro líquido” barato e, por meio da soberania energética – que, segundo ele, a China não tem –, reduzir o custo dos bens “made in USA”.
A articulação entre as medidas Trump ficou subentendida e se daria mais ou menos assim:
a) a atração de investimentos produtivos, que Trump promete promover por meio de barreiras tarifárias, inclusive em relação ao duramente atacado Nafta, obrigaria as empresas, norte-americanas e estrangeiras (e, dentre essas, até mesmo as chinesas), a produzir dentro dos Estados Unidos;
b) essa re-industrialização, induzida pela mais clássica “política de substituição de importações”, contribuiria para reduzir o déficit comercial norte-americano, incidindo positivamente no balanço de pagamento, pressionando os juros para baixo e contribuindo para reduzir preços e gerar mais investimentos privados, turbinados, em tese, pelo corte de impostos que também prometeu fazer;
c) ao lado dessa política industrial via imposto sobre importação e via promoção do investimento privado por meio incentivos tributários, e, justamente para conter os efeitos inflacionários dessas medidas, Trump propõe a redução forçada dos custos de energia por meio de uma expansão acelerada do uso de fontes fósseis retirados do próprio solo americano. Para tanto, atacou drasticamente, na sua performance negacionista mais conhecida, o ambientalismo e a “mentira” do aquecimento global, para delírio dos republicanos em Milwaukee.
Mas Trump não parou por aí.
Ele também prometeu acabar com a crise migratória por meio de uma política dura. Flertando com setores fragilizados da classe trabalhadora norte-americana e antecipando uma possível candidatura de Kamala Harris, a quem chama de “czar da imigração”, Trump falou longamente dos seus planos de terminar o muro na fronteira sul, falar grosso com o que ele considera o submundo – que ainda chama de Terceiro Mundo – e deportar, deportar, deportar, “restaurando totalmente as fronteiras sagradas e soberanas dos Estados Unidos da América desde o primeiro dia”.
Paralelamente, Trump prometeu acabar “com todas as crises internacionais que a administração atual criou, incluindo a horrível guerra com a Rússia e a Ucrânia, que nunca teria acontecido se eu fosse presidente, e a guerra causada pelo ataque a Israel, que nunca teria acontecido se eu fosse presidente”. Deixou explícito que vai cortar praticamente toda a ajuda internacional aos aliados democratas, contribuindo para conter a dívida norte-americana e as taxas de juros e de inflação. Sem medo de parecer incoerente, sugeriu tirar o pé do acelerador na Ucrânia, reduzindo tensões com a Rússia e abandonando, mais uma vez, a Europa e a OTAN à sua própria sorte, ao mesmo tempo em que defendeu subir o tom contra China e Irã. Em relação à Guerra de Israel contra o povo Palestino, limitou-se a elogiar o Iron Dome israelense, defendendo retomar a Guerra nas Estrelas de Reagan para proteger o território norte-americano, sugeriu que a Faixa de Gaza pertence a Israel, ao mencionar cidades israelenses destruídas, e reafirmou mais de uma vez que se fosse presidente, o 7 de outubro jamais teria acontecido.
Trump terminou seu discurso reafirmando mitos do excepcionalismo norte-americano, falando de Deus, do sonho americano e do binômio amor e luta. Mas o essencial, em termos de plano articulado, foi isso.
Não resta dúvida, portanto, que a extrema direira trumpista tem um plano, tanto para vencer as eleições, focando em temas que têm apelo popular como o custo de vida e a reserva de empregos para estadunidenses, quanto para governar, mobilizando um paradoxal, mas coerente imperialismo isolacionista como estratégia para manter os Estados Unidos no topo do mundo.
Isso se traduz em medidas que parecem descabidas quando vistas da perspectiva liberal hegemônica, tais como: reerguer barreiras tarifárias (e não tarifárias) para reindustrializar os Estados Unidos; romper acordos internacionais, especialmente em matéria climática, para recuperar soberania energética baseada em fontes fósseis; desengajar-se ainda mais das arenas multilaterais para reafirmar a autoridade unilateral dos Estados Unidos como nação militarmente mais poderosa, para encerrar conflitos e controlar inimigos.
Vai funcionar? Difícil saber.
Desde os anos 1970, quando os Estados Unidos decidiram unilateralmente romper os acordos de Bretton Woods para reafirmar o dólar como padrão monetário internacional, às custas de uma reestruturação produtiva global, de uma financeirização acelerada e de um investimento vertiginoso em armas e tecnologia, o país vem acumulando déficits fiscais e comerciais que são, em parte, compensados pela entrada de capital financeiro atraído pelos juros dos títulos da dívida norte-americana.
Mas essa política fiscal e monetária expansionista só não explodiu, ainda, numa crise inflacionária de grandes proporções pelo ingresso massivo de bens de consumo de baixo custo fabricados na Ásia, com matéria-prima barata de origem africana e sul-americana, e pela entrada crescente de mão-de-obra imigrante vinda sobretudo da América Latina e do Caribe.
É a engenharia da globalização neoliberal que implodiu de vez em 2008, enterrando nas calçadas de Wall Street o que restava das ilusões de que a democracia liberal e o livre mercado se expandiram inexoravelmente como pilares da hegemonia norte-americana num mundo de paz e prosperidade.
Em direção contrária, o mundo afundou, desde então, no caos de uma crise sistêmica que devora a economia capitalista, a democracia liberal tradicional, as instituições internacionais e o próprio planeta com tudo o que isso implica, das urgências climáticas às emergências sanitárias.
É óbvio, mas não custa lembrar que, assim como no Brasil pós-2013, nos Estados Unidos pós-2008 a polarização que fratura a sociedade gira em torno, justamente, de como enfrentar essa crise das crises.
No caso dos Estados Unidos, os dois partidos centrais concordam que isso deve ser feito, de um lado, reforçando a veia imperialista (leia-se a “diplomacia das armas”) do país, mas divergem sobre quais os campos de batalha prioritários; e, de outro, por meio de um processo de re-industrialização que enfrente a China, embora discordem sobre como fazê-lo, especialmente sobre quais setores econômicos (e, por tabela, quais frações de classe) devem ser priorizados.
Mas na raiz das divergências internas aos Estados Unidos, está uma dificuldade não só ideológica como material: não é simples mexer nos pilares da estrutura neoliberal que sustentou a hegemonia norte-americana por mais de quatro décadas sem fazer tudo implodir.
É por isso que as eleições de novembro não têm implicações apenas para os Estados Unidos. Fica evidente, porém, que entre democratas e republicanos as divergências não são sobre como construir um futuro partilhado para o resto do mundo, mas sobre como sustentar os Estados Unidos no comando de uma estrutura internacional profundamente hierárquica, violenta e desigual.
(*) Maria Caramez Carlotto é professora de Sociologia e Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC.