A queda abrupta do regime sírio surpreendeu, simultaneamente, tanto seus apoiadores quanto seus rivais na opinião pública global. Sem muita luta, o regime entregou-se aos grupos islamistas vindos de Idlib, no Norte do país, que marcharam sem dificuldade até a capital Damasco. Bashar al-Assad, líder do país, partiu para um exílio na Rússia, que foi sua grande aliada nos últimos anos.
De um modo geral, depois de anos de impasse, surgiu um estranho entendimento tácito, pelo qual as bases russas foram preservadas, Israel manteve o domínio ilegal das colinas de Golã, enquanto os turcos avançaram pelo Norte do país – inclusive atacando as forças curdas. O Irã, certamente, perdeu um aliado importante e um posto avançando até o Mediterrâneo, mas impressiona o conserto do que se passou.
Hoje, Putin declarou que nada perdeu na Síria. Trump, que nunca pretendeu derrubar Assad, igualmente disse que isso não é um problema americano. Os democratas, que passaram anos tentando remover Assad, tampouco comemoraram em absoluto. Trata-se, sem dúvida, de um episódio anômico e duvidoso, mas suas razões misteriosas dão pistas para os próximos anos do mundo.
O Pipelinestão
Como dissemos em outra ocasião, a derrubada do regime sírio passava além de questões internas e alcançava a logística de exploração do petróleo. Mesmo opositores do regime de Assad, como Nafeez Ahmed, apontavam que havia um plano claro para derrubar o regime, muito antes da Primavera Árabe e da repressão específica do governo de Assad contra os manifestantes locais.
A Síria sempre foi uma zona de contenção pela qual nem oleodutos, nem gasodutos passavam rumo à Europa, muito embora o país tenha costa voltada para o Mediterrâneo. Em outras palavras, a queda do regime sírio facilita a exportação de hidrocarbonetos da península Arábica para a Europa diretamente por terra, encerrando gargalos como Ormuz, Bab Al-Mandeb e o canal de Suez.
A existência desses gargalos produzia tensões circunstanciais com o aumento do preço do petróleo, fazendo seus preços, volta e meia, aumentarem muito rápido. Essa mudança na logística, ou sua perspectiva, é uma espécie de securitização geográfica, e é isso que parece ter gerado um acordo, mesmo que o grande derrotado na história seja o Irã, mas ele não tenha exatamente sido consultado.
A partir daí, teríamos uma cotação do petróleo desvalorizada ou, pelo menos, mais estável. Como a Rússia está sancionada para a Europa e direcionando seu fluxo de hidrocarbonetos para a China, a tendência seria menos de uma desvalorização do preço do petróleo e do gás e, tanto mais, de uma estabilidade dos preços, uma vez que gargalos geográficos seriam eliminados.
De um jeito mais relevante, o grande acordo tácito sobre a queda de Damasco parece se demonstrar por Putin dizer que não sofreu perda alguma e no fato de que Trump concorda. De uma maneira bastante torta, parece ter sido um dos maiores acordos – senão os únicos – dos últimos tempos, mas por quê? Primeiramente, por questões inflacionárias e a busca por uma distensão geopolítica que tem efeitos econômicos imediatos.
Nesse sentido, sem o regime sírio no mapa, existe a possibilidade de uma nova logística do petróleo que nos conduza para um cenário no qual os hidrocarbonetos podem tender a valer menos – e por tabela as commodities. Isso interessa a Trump, mas pode importar para Putin, à busca de um acordo com os poderes globais que não leve à liquidação do capitalismo russo, em relação ao qual ele foi um paradoxal salvador, ao negar o neoliberalismo radical.
Os nós górdios dos Estados Unidos de Trump e da Rússia de Putin
Trump seguirá uma lógica protecionista, ancorada em setores capitalistas cuja vida se dá no ecossistema do mercado de capitais, isto é, o mundo da Bolsa e das ações. No seu mandato inicial, ao usar tarifas sobre importações que favoreciam a determinados ramos internos da economia, Trump contribuiu para a valorização das ações, em um movimento que se manteve ao longo do mandato de Biden.
O mercado de ações americano, no entanto, tem registrado quedas seguidas, o que preocupa analistas do mundo inteiro com a possibilidade de que os anos de valorização tenham acabado. Pior do que isso, é que a inflação de ativos pode caminhar para uma lenta e dolorosa desvalorização que obrigará os investidores a cobrar juros mais altos do Fed, o banco central americano – como uma compensação para os especuladores usais.
Se a trumponomics mirava, além disso, num real fortalecimento da economia americana, é difícil dizer. O fato é que se os índices inflacionários não dispararam, por outro lado, o Fed pôs em práticas taxas de juros gradualmente altas que frearam a alta dos preços antes da pandemia. Se a Covid-19 não nos permite dizer que o seria depois, a combinação da manutenção disso com a guerra na Ucrânia apresentaram um cenário inflacionário no país.
Hoje, o problema é bastante claro. Ao anunciar que irá redobrar tarifas de nações importadoras – porque essa prática se manteve sob a gestão Biden – em um cenário no qual a inflação foi contida às expensas de juros altos – que agravaram o endividamento familiar, contribuindo para a volta de Trump ao poder –, podemos ter um cenário complexo. Pode ser que isso contribua para novas altas das ações, cessando a demanda por juros em razão da especulação.
O problema central é que se o mercado de ações pode se aquecer novamente pelas práticas protecionistas de Trump, fazendo seus apostadores não demandarem juros tão altos para proteger seus investimentos, por outro lado isso contribui para um clima duplo de problemas: encarecimento de importações e, por outro lado, desestímulo de busca por títulos do tesouro por nações importadoras tarifadas, exigindo juros para torná-los atraentes para a banca usual.
O plano de Trump tem muitos riscos. Mas certamente ele precisará fomentar a paz para garantir que os preços da energia caiam, gerando um efeito sobre commodities de um modo geral. Sem esse espaço, sua política estará na mira das próprias autoridades monetárias americanas. Nesse sentido, a “pacificação” da Síria parece fazer sentido, inclusive tendo um governo russo buscando uma distensão.
Os planos de Andrey Belousov, o arguto ministro da Defesa de Putin, passam pelo fim da guerra e uma reconversão industrial como nova vocação da economia russa. Dará certo? Não sabemos. A estratégia que é, tanto mais, uma tentativa de produzir uma nova sinergia entre dois planos singulares enfrentará, por certo, muitos percalços, principalmente do lado americano. Se falhar, no entanto, estaremos mais próximos de uma Terceira Guerra.
(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.