Há 30 anos, a Coreia do Sul, a exemplo de muitos outros países que cultuavam as produções de Hollywood, praticamente só exibia em suas salas de cinema filmes norte-americanos. Hoje, sua indústria audiovisual é motivo de orgulho nacional e importante fonte de divisas. As exportações coreanas de filmes, série e games somaram US$ 13,2 bilhões em 2022, a produção de conteúdo é base de um complexo industrial e cultural que está recebendo, a partir de 2023, investimento público de US$ 4 bilhões, em cinco anos, e o Comitê da Indústria de Conteúdo, com seu plano plurianual, é coordenado pelo primeiro-ministro.
O Brasil tem todas as condições de vir a ter uma pujante indústria de conteúdo. Tem tradição na indústria cinematográfica que começa no final dos anos 1940, com os Estúdios Vera Cruz, passa pelo Cinema Novo, pelo Cinema Marginal, pela Embrafilme, pelo cinema pós-redemocratização, até consolidar-se no cenário atual. Tem um arcabouço regulatório, com agência reguladora e legislação setorial de estímulo ao desenvolvimento do audiovisual brasileiro que, agora, precisa ser estendida ao mundo digital, com mecanismos de fomento. Carece, no entanto, de um conjunto integrado de políticas públicas que contemple toda a cadeia produtiva da indústria de conteúdo, não só da produção de audiovisual, mas também da indústria de games, que é um importante nicho de mercado no qual o Brasil já mostrou que pode ser competitivo.
Para os envolvidos nesse debate, já estamos atrasados na regulação do streaming na internet, ou seja, em estabelecer contrapartidas a serem cumpridas pelas plataformas estrangeiras que operam no país exibindo filmes e séries produzidos em outras partes do mundo. Há vários anos, países europeus e mesmo asiáticos regulamentaram o streaming na internet. A França, por exemplo, já está na terceira rodada da regulamentação, em que elevou os percentuais cobrados das plataformas pela exibição dos conteúdos – a média da taxação lá é de 25% do faturamento.
Aqui, Netflix, que desembarcou no Brasil há 13 anos, Google/Youtube, Disney, Amazon, Apple TV, entre outros, operam pagando apenas ISS e ICMS. Há cinco anos não pagam a taxa de Contribuição para o Desenvolvimento Industrial do Cinema Nacional – Condecine, de 11% sobre remessa de lucros, porque a Receita Federal está avaliando a cobrança do tributo (a taxa não é cobrada se a empresa investe valor equivalente em produção audiovisual no país). Segundo cálculos da Agência Nacional do Cinema – Ancine, a Condecine Remessa deveria gerar R$ 1 bilhão/ano e existe um passivo de R$ 4 bilhões a R$ 5 bilhões que não foram cobrados.
As grandes plataformas estrangeiras de streaming não só vêm destruindo o mercado da TV paga e mesmo da TV aberta pois têm um modelo de negócios muito mais modular e flexível, mas também porque têm uma carga tributária bem menor – o que, convenhamos, é uma anomalia, pois protege quem domina o mercado. Nesse cenário, regular o streaming na internet é tarefa mais que urgente, pois as plataformas são majoritárias nesse mercado que, segundo estimativas, têm faturamento anual de R$ 35 bilhões (a fatia do leão seria da internet, mas o valor inclui também publicidade na TV aberta e TV paga).
Como levar à frente a luta pela regulação do streaming na internet? Há uma série de iniciativas a serem contempladas no âmbito do Executivo e das agências reguladoras – Ancine, no que se refere à regulação para disciplinamento dos serviços, e CADE, no âmbito da defesa da concorrência –, e também do Legislativo. O Senado aprovou, em abril, o PL 2331/2022, com relatoria do senador Eduardo Gomes (PL/TO), que regulamenta a cobrança da taxa de Condecine para os streaming de vídeos exibidos pelas plataformas digitais com receita bruta acima de R$ 2 milhões anuais e cem produções. Mas o texto, que ainda vai ser examinado pela Câmara dos Deputados, é muito limitado, pois considera empresa estrangeira instalada no país como brasileira para fins de benefícios fiscais. Além disso, prevê o fim da Condecine Remessa.
Na Câmara, o texto aprovado no Senado deverá ser debatido juntamente com o PL do deputado André Figueiredo (PL 8889/2127), que, embora resgate o conceito de empresa brasileira para aquelas que tenham maioria de capital nacional e estabeleça alíquota de imposto de 6% (o dobro da prevista no PL do Senado), ainda é tímido de acordo com as análises de especialistas do setor. Isso porque a alíquota média, em função da dedução de investimentos em produção local, cai para 2,5% no PL da Câmara (1% no caso do Senado). A arrecadação total, a partir de simulações feitas, na melhor das hipóteses ficaria entre R$ 330 milhões e R$ 800 milhões. Muito pouco frente ao que é necessário para financiar o desenvolvimento da indústria brasileira de audiovisual. Hoje, a Condecine arrecada R$ 1,2 bilhão (a quase totalidade vem da taxa cobrada das operadoras de telecom); 30% vão para o orçamento da União e os 70% restantes para o Fundo Setorial do Audiovisual.
Novos paradigmas
As estratégias das grandes plataformas digitais implicam desafios regulatórios e concorrenciais importantes. As características intrínsecas à sua atuação – o uso de dados de terceiros, por vezes concorrentes embarcados; sua situação como mercados bilaterais ou plurilaterais e os efeitos de rede, que tendem a gerar concentração; os movimentos agressivos de integração e a manipulação de preços –, criam uma situação complexa, que dificulta o uso dos instrumentos tradicionais pelas instituições de defesa da concorrência.
Diante desse cenário, o Ministério da Fazenda apresentou, em outubro, um estudo com propostas para aperfeiçoar a regulação concorrencial brasileira no que se refere às plataformas digitais. O objetivo das alterações na Lei da Concorrência (Lei 12529/2011), a serem feitas pelo CADE, é impedir que as plataformas digitais exerçam seu poder dominante, como o de dar preferência a seus produtos em marketplaces, firmar acordos de exclusividade e promover aquisições estratégicas para impedir aquisições futuras por terceiros.
Está em avaliação, no Ministério da Fazenda, a taxação das plataformas digitais, que vem sendo estudada, desde 2021, no âmbito de alguns fóruns multilaterais, como a OCDE, como parte de um acordo relativo ao processo de digitalização. Como o acordo, que deveria ter sido formalizado até junho deste ano, não ocorreu até por resistência dos Estados Unidos, alguns países estão unilateralmente estabelecendo seus impostos. A Lei do Imposto sobre Serviços Digitais do Canadá entrou em vigor no final de junho, com efeito retroativo a janeiro de 2022; estabelece cobrança de imposto de 3% sobre empresas de serviços digitais com faturamento acima de 20 milhões de dólares canadenses. O primeiro pagamento será no final de junho de 2025. Nova Zelândia aprovou lei semelhante, que entra em vigor ano que vem.
Independentemente se a Fazenda vai propor ou não a taxação das big techs, o certo é que a indústria brasileira de audiovisual precisa se reorganizar frente a um cenário de forte internacionalização do setor, de concentração do mercado nas mãos de oligopólios que têm seus custos diluídos pela escala mundial e de uma economia baseada no extrativismo dos dados, fonte relevante de receita para as big techs.
A produção independente brasileira e mesmo as redes de TV aberta e de TV paga estão fragilizadas, com receitas em declínio, e sua sobrevivência depende de uma regulação que priorize produção nacional, investimentos e um projeto de desenvolvimento que garanta espaço para a empresa brasileira, promova sua modernização, fomente a diversidade e recupere a receita.
Fora a fragilidade frente à concorrência internacional, o setor audiovisual brasileiro enfrenta problemas estruturais que têm que ser enfrentados nessa fase de reorganização do segmento frente a nova realidade do mercado – o audiovisual responde por 80% do tráfego de dados na internet. A TV carece de diversidade editorial, há dificuldades para o desenvolvimento regional e a produção independente segue isolada.
Para o Brasil desenvolver uma indústria de conteúdo audiovisual que venha a ser competitiva não basta uma iniciativa legislativa de taxação das plataformas estrangeiras de streaming na internet. É preciso um projeto de desenvolvimento de toda a cadeia produtiva da indústria brasileira de audiovisual, de fomento da produção independente, que é mais flexível, mais regional e se adequa melhor ao formato de parcerias com outras empresas nacionais e estrangeiras, de aperfeiçoamento da regulação da defesa da concorrência para conter o poder dos oligopólios e da regulação setorial para que ela se antecipe aos movimentos de mercado. Enfim, é preciso transformar o Plano de Diretrizes e Metas do Audiovisual Brasileiro em um programa de governo.
(*) José Dirceu foi ministro-chefe da Casa Civil no primeiro governo Lula (2003-2005), presidente nacional do Partido dos Trabalhadores e deputado federal por São Paulo.