Sexta-feira, 18 de abril de 2025
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“Ainda que enterrem a verdade, não sepultam a virtude.”
“Além ou aquém, sempre vejas com quem.”
“Não há ausentes sem culpas, nem presentes sem desculpas.”
– Provérbios populares portugueses

Crise de direção é uma ideia poderosa. O conceito busca explicar que existe um hiato entre os interesses dos trabalhadores e a capacidade da classe de construir organizações sociais ou políticas que controlam, e lideranças que estejam à altura de defendê-las, seja por imaturidade objetiva – juventude, hetereogeneidade –  ou subjetiva – pouca instrução, falta de tradição –, o que nos remete ao baixo nível de consciência de classe. O conceito se aplica, frequentemente, à representação popular, porque a classe dominante não tem as mesmas dificuldades. Os capitalistas detêm controle da riqueza e do poder, e podem selecionar nas fileiras de suas famílias, ou entre talentos de outras classes, os seus chefes políticos. Ainda que não seja incomum a baixa qualidade de seus partidos, não ocorrem dissidências sociais nas lideranças burguesas. Lideranças dos partidos que defendem a ordem capitalista podem ser mais conservadoras ou liberais, mais extremistas de direita ou mais democráticas, mas não vacilam e nunca renegam os interesses que representam. “Diásporas” de classe são raras. 

Existem duas posições extremas, mas igualmente equivocadas sobre o tema da crise de direção nos movimentos dos trabalhadores e seus aliados, ou seja, da esquerda. A primeira é daqueles que argumentam que este conceito é errado ou o subestimam, e defendem que corresponde a uma teoria moral da “traição”. É justo que a história deixa lições, mas não perdoa ninguém. Esse reducionismo – “as massas merecem os partidos que têm” – é um exagero abrupto. A ingenuidade, inexperiência, e insegurança das massas não explica tudo. A segunda é daqueles que a superestimam e consideram que a chave de explicação de todas as derrotas é o papel das direções. É justo que os impasses da luta pelo socialismo, depois de tantas crises do capitalismo e revoluções interrompidas e derrotadas, não podem ser entendidas sem o papel de aparelhos que desenvolveram interesses próprios. A presença da socialdemocracia e do estalinismo, as duas forças mais influentes na esquerda do século XX na Europa e, em menor medida, nos países periféricos, dividiu as classes trabalhadoras, e seus erros foram chave para muitas derrotas, mas isso não explica tudo. O maior obstáculo de todas as revoluções foi a contrarrevolução.  

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Um exemplo clássico da primeira posição, que foi chave na divisão entre a maioria da socialdemocracia europeia e sua ala esquerda, liderada por Lênin e Trotsky na célebre conferência de Zimmerwald de 1915, pode ser encontrado na avaliação do que foi o comportamento do proletariado diante da Primeira Guerra Mundial: suas responsabilidades na conflagração, e sua fragilidade diante do apelo do discurso nacionalista-imperialista, sobretudo na França e Alemanha, mas, também, na Inglaterra e Rússia. É um fato inquestionável que a maioria dos trabalhadores europeus apoiou a política beligerante de seus governos no início da guerra, e esse estado de espírito exerceu uma enorme pressão sobre os seus partidos. Mas também é verdade que nem todas as classes operárias da Europa seguiram o caminho dos alemães e franceses: os suíços e os italianos não o fizeram, e não foram os únicos. Mais importante, em pouco tempo, as atrocidades e aberrações exigidas pela guerra de trincheiras deslocaram a opinião dos setores mais massivos da classe de apoio entusiástico para hesitação e, depois, para a hostilidade à guerra. Finalmente, é vital compreender qual foi a dinâmica dos fatos, na sua articulação causal, de conjunto: a mesma classe trabalhadora que sucumbiu ao apelo nacionalista no início da Guerra, protagonizou na Rússia em 1917 a primeira revolução socialista da história e, em 1918 uma fulminante revolução política democrática que derrubou o Kaiser na Alemanha, e proclamou a República.

Na avaliação de um processo histórico é preciso evitar perder a perspectiva da totalidade: por isso mesmo deve ser considerado enigmático o balanço “irônico” de uma suposta “traição” do proletariado alemão contra si mesmo e contra os interesses dos trabalhadores europeus, como se não fosse comum às classes populares agirem contra os seus interesses. Não só o fazem, dentro de certos limites, e por um certo período de tempo até que os acontecimentos mesmos demonstrem pela força viva das suas consequência, quem está sendo beneficiado, e quem está sendo prejudicado, como o fazem de forma recorrente. Não é nada excepcional. Ao contrário, essa é uma das regularidades históricas mais frequentes, e por isso mesmo é que a história tem um grau de incerteza e imprevisibilidade tão elevado. Os oprimidos são, na maioria das circunstâncias, não só dominados, mas dirigidos pela classe dominante. Isso é a crise de direção. 

As massas não aprendem política na escola. Os trabalhadores, como todas as classes sociais ascendentes no passado histórico, passaram pela cruel escola do aprendizado político-prático para construir pela experiência uma consciência de onde estavam localizados os seus interesses de classe. Nada substitui essa experiência. Não parece, portanto, razoável retirar conclusões teóricas definitivas sobre o nacionalismo “incorrigível” do proletariado dos países centrais, ou reformismo “teimoso” dos países periféricos. O tema é vital porque, se os trabalhadores dos países centrais não os impedirem, os imperialismos modernos, provavelmente, arrastarão a humanidade em novas hecatombes guerreiras que ameaçam a sobrevivência do que entendemos como civilização. Mas a experiência somente não é o bastante. Sem a incidência da luta política de organizações revolucionárias a maioria dos trabalhadores não se eleva à consciência da luta pelo poder. Outra questão mais complexa, portanto, diz respeito às relações do proletariado com suas direções: que a socialdemocracia se adaptou às pressões de sua base social é um fato incontroverso e, nesse sentido, em um tribunal da história, se existisse, não haveria “absolvição” para o proletariado alemão. Afinal, a socialdemocracia não teria feito senão o que os trabalhadores que o apoiavam queriam (e esperavam) que ela fizesse. Seria então razoável a conclusão que considera a dificuldade dos explorados e oprimidos se organizarem, fundamentalmente, pelo papel de lideranças pouco consequentes uma “teoria das traições”, ou uma versão conspirativa da luta política? Nenhuma classe na sociedade contemporânea pode se expressar somente através de um partido, nem a burguesia, nem a classe média, nem os trabalhadores.. Há uma inevitável luta de partidos na esquerda, entre os mais moderados que apostam em uma reforma do capitalismo, e os mais radicais que apostam em ir além do capitalismo, portanto, na necessidade de uma transformação revolucionária e, entre estas posições extremas, mediações intermediárias. 

A forma dominante dos regimes políticos nos países centrais, desde da derrota do nazifascismo em 1945, e na América Latina desde a restauração capitalista na URSS em 1989/91, foram democracias liberais que garantiram legalidade às correntes socialistas e comunistas. A existência de organizações de esquerda com participação nos parlamentos e, mais excepcionalmente, com acesso aos governos, exerceu pressões gigantescas de adaptação à ordem. As ilusões reformistas não morrem sozinhas. Tudo é uma questão de proporção. As massas não são, politicamente, inocentes. Mas as responsabilidades das direções e dos seus atos nunca foi, historicamente, irrelevante. Todo aparelho político desenvolve, em alguma medida, interesses próprios. 

Portanto, as escolhas dos sujeitos sociais não absolvem as responsabilidades dos sujeitos políticos. Todos os partidos de esquerda, mais moderados ou radicais, tiveram relações conflitantes com suas bases sociais em algum momento. Grandes direções são aquelas que tiveram a lucidez e a coragem de defender os interesses de sua base social, até contra a vontade delas, correndo o risco de ficar em minoria. Existe nas sociedades modernas de forma ininterrupta uma luta política entre os partidos que expressam, ou buscam traduzir os conflitos de interesse na sociedade; mas existe, também, para além de uma luta entre os partidos para conquistar o apoio de sua base social, uma disputa da base social das outras classes cujo apoio aspiram, ou necessitam, para as posições que, em cada momento, correspondem melhor à defesa de seus interesses. Isso significa que existe sempre uma defasagem entre as necessidades objetivas das classes, e o grau de consciência ou estado de espírito, humor,  ânimo que a classe tem sobre os seus interesses. E em momentos de súbitas viradas do curso das situações políticas o hiato é maior.

Esse hiato é ainda mais acentuado entre os trabalhadores do que entre as classes dominantes, pela razão arqui-conhecida de que os trabalhadores têm sempre que vencer uma enorme quantidade de obstáculos materiais, culturais, políticos e ideológicos para se afirmar e constituir como classe independente. A democracia não é um regime político de luta entre os iguais: as classes proprietárias lutam para exercer e preservar um domínio e um controle sobre a vida material, e, também, sobre a vida cultural e política dos trabalhadores, em condições de superioridade que são incomparáveis. A burguesia luta por uma hegemonia sobre toda a sociedade, sob a bandeira dos seus valores e seus interesses, que são sempre apresentados como os interesses de todos: ela não ambiciona somente dominar, ela quer dirigir. A luta para conquistar hegemonia socialista entre as massas populares, dividir e arrastar uma parcela das camadas médias, é a chave da estratégia.

Os partidos de esquerda foram assim, historicamente, um instrumento de organização e resistência. Devem ser um ponto de apoio para que a classe possa se defender: essa é a sua utilidade e, se fracassarem nesse elementar propósito, tendem a perder autoridade, audiência e respeito. Por isso, a fórmula simples que propõe resolver a questão da representação política com a “equação do reflexo” – triunfam aqueles que dizem aquilo que as massas querem ouvir – é estéril. O problema é imensamente mais complexo, porque todas as classes têm a expectativa de que as suas direções vejam além do que elas mesmas foram capazes de perceber. Não perdoam os dirigentes que se adaptaram às pressões do momento e, ziguezagueando de acordo com as flutuações dos humores instáveis das multidões falaram, em cada momento, aquilo que a maioria queria ouvir. A história revela à exaustão que as classes podem ser impiedosas e inflexíveis com os seus dirigentes. Esse julgamento severo só se impõe diante de acontecimentos terríveis que exigem enormes sacrifícios, que transtornam a tal ponto as circunstâncias da vida da sociedade que fazem as grandes massas, em condições normais, politicamente desinteressadas, entrarem no palco da história como personagens principais. Essas circunstâncias são as crises revolucionárias. Por último, como organizações que se apresentam e constroem como direção de classe, ou disputando com os partidos burgueses a direção da classe, os partidos operários se propõem, em cada circunstância, interpretar onde estão depositados os interesses da classe que pretendem representar. Mas os partidos operários não atuam fora das pressões sociais da politica: estão inseridos em uma ordem econômico-social desigual, e portanto expressam maior ou menor capacidade de resistir às pressões das classes dirigentes da sociedade.

Existe assim uma intransferível responsabilidade moral e política, em uma esfera diferente das responsabilidades das massas, que é própria das organizações políticas e suas direções. No caso dos partidos que se reivindicam de esquerda essa responsabilidade parece ser, historicamente, ainda maior, dado a enorme dificuldade de uma classe ao mesmo tempo explorada materialmente, oprimida culturalmente e dominada politicamente construir a sua independência. Nesse sentido, quando o SPD apoiou os créditos de guerra, e defendeu perante a sua classe que os interesses do proletariado eram indissolúveis dos interesses da Alemanha, o SPD traiu os trabalhadores, e seus dirigentes não podem ser absolvidos pelas circunstâncias transitórias que levaram a maioria da classe a ter a mesma opinião. Relativamente poucos anos depois, a maioria da classe percebeu que os seus interesses não eram os mesmos que os do seu governo. Mas tiveram que fazê-lo sozinhos pelo caminho da experiência, porque não encontraram na sua poderosa organização um alerta. Este tipo de defasagem política entre e classe e direção também afeta as outras classes da sociedade, inclusive a burguesia. É célebre o exemplo de Churchill e sua luta, durante anos, contra a maioria da burguesia inglesa sobre a necessidade do Reino Unido se preparar para o esforço de guerra contra o nazismo. O que, no entanto, parece ser específico à condição do proletariado, é que, como classe ascendente, ele tem uma enorme dependência de encontrar nas suas organizações um ponto de apoio, porque é consciente que sua força depende de sua unidade, e por isso os seus setores mais massivos preferem estar mal organizados do que desorganizados. A burguesia troca de chefes muito mais facilmente e mais rápido.

(*) Valério Arcary é historiador e professor titular aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.