O recente movimento de apreciação do dólar em relação ao real tem protagonizado as principais pautas no debate econômico. Esse movimento, aparentemente técnico e às vezes até alheio à nossa percepção, esconde elementos mais complexos, que guardam relação com características mais estruturais da economia brasileira e seu caráter dependente; características mais de médio prazo, que dizem respeito à atual fase financeirizada e globalizada da economia capitalista e, sobretudo, em caráter mais conjuntural, ao atual momento da economia estadunidense e das pressões políticas e econômicas que recaem sobre o governo Lula. Vamos entender.
Em primeiro lugar, há uma hierarquia na economia capitalista, que podemos caracterizar com os conceitos de “centro” e “periferia” ou de economias “desenvolvidas” e “subdesenvolvidas”. Esses “lugares” distintos que diferentes países ocupam no processo de desenvolvimento desigual do capitalismo têm no movimento das moedas um fator importante. Dentro da hierarquia internacional de moeda, o real é uma moeda “fraca” e o Brasil é marcado por ser um país de economia dependente, o que significa que ele tem seu comportamento econômico, em grande medida, ditado pelo dinamismo econômico e pelas decisões de política econômica tomada pelos países centrais.
Na atual fase do capitalismo, marcado pela globalização financeira, essa condição dependente se acentua. Desde a liberalização financeira, há quase ausência absoluta de controles sobre as transações financeiras, o que faz com que os fluxos de capitais se direcionem entre países, ou que entrem e saiam do Brasil, por exemplo, de forma livre, o que acarreta movimentos bruscos de apreciação e depreciação do real. Vou dar um exemplo: o Lula faz uma fala, o “mercado” não gosta e reage, politicamente, tirando capitais especulativos do país e reduzindo o quanto vale o real em relação ao dólar. Isso é possível porque há plena liberdade do movimento de capitais. Isso é recente, um movimento típico de liberalização financeira que se iniciou na década de 1990.
A nossa moeda, o real, hoje é conhecida como uma moeda “commodity” porque ela é negociada em mercados financeiros futuros assim como se negocia a safra futura de soja, petróleo e outras mercadorias negociadas em bolsas de apostas. Isso, por si só, já nos deixa muito expostos a movimentos especulativos. O real é uma das moedas mais voláteis do mundo. Para ilustrar esse movimento, recentemente, em apenas dois meses, o real se desvalorizou em mais de 11%, a maior desvalorização desde o começo do governo Lula.
Mas a que se deve esse movimento? Em primeiro lugar, ao próprio movimento de apreciação do dólar. A manutenção da taxa de juros elevada nos EUA e a confiança nos títulos da dívida pública americana são um atrativo para que os capitais se mantenham por lá. Como a taxa de câmbio é um “preço”, determinado por oferta e procura, se há poucos dólares nas demais economias, o seu preço tende a ser mais elevado em relação às demais moedas. É isso que explica porque o dólar tem se apreciado em relação a quase todas as demais moedas periféricas.
Mas e o Brasil? Além desse movimento, há as pressões que o mercado exerce para garantir que seus interesses sejam atendidos independentemente de quem ocupe a cadeira do executivo. Portanto, há um conjunto de detentores de riqueza financeira que a movimentam, realocando-a em processos de entrada e saída e, com isso, apreciando e depreciando o valor da moeda. Mas estamos diante de um terceiro processo, e esse é mais importante, que é um ataque especulativo, talvez mais coordenado. Pode ser pela desconfiança, embora infundada, desses mesmos agentes de mercado com relação aos “fundamentos” econômicos brasileiros. Eles acham que a economia brasileira vai mal, ou acham que incorreremos em crise fiscal e, por isso, apostam contra a moeda, ou mesmo, no caso de exportadores, adiam a internalização do seu capital no país. Ou mesmo uma parte da própria burguesia brasileira, com motivações políticas de desestabilização do governo, pode estar retirando capital em moeda estrangeira, de fundos estrangeiros, do país. Não sabemos exatamente, esse é – inclusive – um elemento para pesquisa. Aliás, muitos setores podem estar ganhando com esse movimento. Os exportadores desejam uma moeda mais depreciada e podem, mesmo, ganhar nesse diferencial de preços.
O que sabemos é que em cenários como esse, de apreciação ou mesmo de depreciação brusca da nossa moeda, como houve no ano de 2011, por exemplo, o Banco Central do Brasil poderia utilizar seus instrumentos para intervir no mercado. Nada muito fora da curva. Aliás, nosso regime cambial é conhecido como “câmbio flutuante sujo”, o que quer dizer que o valor da nossa moeda é determinado pelo mercado, mas que o Banco Central pode, e deve, fazer intervenções pontuais. O que não tem sido feito.
Em 2022 tanto o Banco Central quanto o Ministério da Fazenda alteraram as alíquotas de IOF sobre os investimentos estrangeiros de portfólio e impuseram controle de capital sobre as captações externas, inclusive sobre os empréstimos intercompanhia. A partir de fevereiro de 2012, o Banco Central se empenhou no esforço de desvalorizar a moeda brasileira, fazendo operações de swaps, que se tornaram, inclusive, mais recorrentes no período. Essa opção pela intervenção no mercado futuro preservava as reservas cambiais brasileira, uma vez que os contratos de swap são liquidados em reais.
Portanto, independentemente das causas, que ainda devem ser melhor analisadas, o consenso é que está havendo um ataque especulativo sobre o real, e, ao que tudo indica, o Banco Central “dorme em berço esplêndido”. Há um conjunto de instrumentos importantes que devem operados. Sejam os mais tradicionais, de operação de leilões de moeda estrangeira, sejam os contratos de swap cambial. O que não pode é um Banco Central que se recusa, com instrumentos e com o conjunto de reservas cambiais que o Brasil acumulou, se negar a intervir sobre esse movimento acentuado de desvalorização do real, com impactos importantes sobre a inflação brasileira.
(*) Juliane Furno é economista, Professora da Faculdade de Economia da UERJ e militante do Movimento Brasil Popular. É autora de “Imperialismo: uma introdução econômica” (Da Vinci, 2022)