O realismo marxista
Estamos sempre em conjunturas, mas elas não explicam, em si mesmas, o que virá. Sem realismo revolucionário não é possível decidir quando é a hora de recuar ou avançar
“Encobrir o erro é errar outra vez.”
“Não sou rio para não voltar atrás”
Sabedoria popular portuguesa
“O segredo para se andar sobre as águas é saber onde estão as pedras.”
Sabedoria popular chinesa
“Para conquistarmos a confiança sólida e inabalável da maioria dos operários, devemos, sobretudo, evitar de lhes lançar poeira nos olhos, de exagerar nossas forças, de fechar os olhos sobre os fatos, ou pior ainda de deformá-los. É preciso dizer o que é. Não chegaremos a enganar os nossos inimigos: eles têm mil meios de verificação. Mas, enganando os operários, enganamos a nós mesmos. Tentando parecer mais fortes do que somos, só nos enfraqueceremos. Não há nisso, caro camarada, nenhuma ‘falta de confiança’, nenhum ‘pessimismo’ (….) É precisamente aquele que acredita no futuro revolucionário que não tem nenhuma necessidade de ilusão. O realismo marxista é a premissa do otimismo revolucionário.[1]”
– Leon Trotsky
Não há militância coletiva sem uma compreensão comum do que fazer. O que fazer deve ser ditado por uma análise da conjuntura. Não é adequado classificar análises como otimistas e pessimistas. O maior perigo na interpretação da realidade é o impressionismo. Impressionismo é uma forma de pensar. O impressionismo imprudente retira conclusões apressadas sobre a conjuntura porque prescinde do método. A chave do método é o estudo das relações sociais e políticas de força. Deve ser esgrimido com realismo. O marxismo é uma ferramenta que recomenda o máximo rigor, portanto, a mínima contaminação pelas nossas ansiedades ou preferências. O impressionismo é uma ligeireza de análise centrada na maximização do tempo do presente que sustenta opiniões rígidas e precipitadas. É uma forma de interpretação dos acontecimentos que diminui a importância das mediações, porque secundariza as contradições, diminui a complexidade e, portanto, favorece o desequilíbrio e defende táticas ziguezagueantes.
Análise marxista remete ao método. Além da lógica, demanda estudar a economia, a sociologia, a história, a política, e outras disciplinas, como análise de discurso, direito, psicologia social, etc. Portanto é complexo O método deve ter rigor científico. Mas política revolucionária não é possível sem “arte”. Arte porque se trata de aferir a quente a evolução da consciência média das massas populares. A questão do tempo necessário para as classes populares resolverem os seus impasses subjetivos é um desafio apaixonante, mas perturbador. Na longa duração, em um sentido, o tempo corre a favor das classes trabalhadoras. Porque as crises recorrentes demonstram a impossibilidade do capitalismo, grosso modo, resolver os impasses da civilização. Apesar de todas as derrotas políticas, e mesmo considerando as derrotas históricas, enquanto o sujeito social existe e luta, a última palavra ainda está por ser dada e, nesse sentido, os combates decisivos, objetivamente, são os que estão colocados à sua frente, e não os que ficaram para trás. Mas não vivemos no tempo das longas durações. Vivemos nos prazos curtos da tirania do presente imediato. Na luta política socialista os tempos não são indefinidos. O objetivo estratégico é transformar a sociedade ao serviço dos interesses dos trabalhadores. A tática é chegar ao poder. Quanto antes melhor, porque temos pressa de mudar a vida. Se possível, enquanto estamos vivos. Um projeto político sério precisa considerar as medidas do tempo. O tempo não deve nos cegar, mas não pode ser ignorado.

Cena da revolução russa de 1917. “Estamos sempre em conjunturas, mas elas não explicam, em si mesmas, o que virá. Sem realismo revolucionário não é possível decidir quando é a hora de recuar ou avançar.”
(Foto: Domínio Público)
Relação social de forças é um conceito chave para uma ação política responsável. Remete à avaliação da estrutura social ou à posição de força respectiva das classes e frações de classe. É uma ideia que procura estabelecer os parâmetros para medir quem está avançando, e quem está recuando na luta de classes. Há polêmicas sobre quais devem ser estes critérios. Na luta de classes os critérios são objetivos e subjetivos. Exigem uma análise desapaixonada. São muitas as variáveis. Indicadores objetivos são, por exemplo, o peso social maior ou menor dos trabalhadores sobre as outras classes, a força maior ou menor de suas organizações, o número maior ou menor de greves e protestos, o tamanho maior ou menor das passeatas. Critérios subjetivos remetem à investigação do estado de ânimo, ou disposição de luta, a maior ou menor confiança das classes exploradas e oprimidas em si mesmas. Análises sérias exigem um esforço rigoroso de abstração. A cabeça acompanha a pressão do chão que os pés pisam. A experiência pessoal de cada um de nós é valiosa, mas é parcial. Generalizações rápidas conduzem, inevitavelmente, ao erro. Dizem que a intuição é a inteligência operando em “altíssima velocidade”. Há um grão de verdade nesta “máxima” do empirismo. Mas bom marxismo não é empirismo, embora seja máximo ativismo.
Análise de conjuntura começa por separar as partes de um todo, e trabalhar em diferentes níveis de abstração, identificando os conflitos por ordem de importância. Os fatos não falam por si mesmos. Interpretar os acontecimentos exige minúcia, detalhe, rigor. Os acontecimentos têm pesos distintos. Calibrar o que é importante e distinguir do que é circunstancial ou até acidental é decisivo. O impressionismo desequilibra as conclusões. Quando um problema é complexo o melhor é dividir em partes menores. Tudo é contraditório. Só ao final se pode fazer a síntese, uma reconstituição, em um grau de complexidade maior. Só a síntese é que permite a consideração das hipóteses de evolução, as tendências em conflito. A força da classe dominante vem do peso nas instituições, no dinheiro e na riqueza, e nos meios de comunicação. Mas também da força de inércia das ideologias que envenenam a mentalidade das massas. A força da esquerda repousa, sobretudo, na capacidade de se apoiar nas mobilizações de massas. Mas há um “teatro” das ilusões. Uma espécie de “jogo dos espelhos” em que os gordos parecem magros, e os baixinhos parecem gigantes. O mais importante: análise de conjuntura exige uma blindagem da pressão ideológica da classe dominante. Eles mentem. Não é possível fazer a defesa da ordem sem manipulação.
As condições de vida materiais e culturais na luta pela sobrevivência são uma das expressões de uma determinada relação social de forças. Mas não são absolutas, tudo é relativo. Há uma dialética entre estrutura e superestrutura. Maior miséria expressa uma relação de forças ruim, mas não é o mais fundamental. As variações na disposição de luta das classes populares é sempre o termômetro mais importante. Um elemento subjetivo que nos remete às variações de humor ou estado de ânimo, portanto, à psicologia social. Relação política de forças é uma análise da superestrutura. Resultados eleitorais informam muito sobre a relação de forças. Mas são parciais. Uma semana a mais ou a menos, assim como uma prorrogação em um jogo de futebol, podem ser decisivas em uma eleição. Tudo está em movimento, e as posições de classe em permanente transformação. A relação de forças tem como objetivo identificar quem está na ofensiva e quem está na defensiva. O critério são as ações, não os discursos. A luta de classes assume muitas formas. Umas mais visíveis e outras mais moleculares, mas ela está sempre presente. Pesquisas de opinião são uma variável útil, porém, distorcida da relação de forças. Todas as pessoas são iguais na hora da pesquisa. Mas na vida não são todos iguais. A parcela politicamente ativa da sociedade é muito mais influente. Uma das peculiaridades do Brasil é que um terço da sociedade é semiletrada. O abismo entre a parcela instruída da sociedade e as camadas mais vulneráveis das massas é abismal. A análise deve ser sempre feita em diferentes graus de abstração. A relação social de forças entre as classes é mais estável, duradoura e constante que as relações políticas de forças. Não há plena coincidência entre as duas. A relação social de forças indica a situação, a relação política de forças a conjuntura. Estamos sempre em conjunturas, mas elas não explicam, em si mesmas, o que virá. Sem realismo revolucionário não é possível decidir quando é a hora de recuar, de manter posições, ou de avançar. Sem realismo marxista é impossível vencer.