“O lançamento do DeepSeek, Inteligência Artificial (IA) de uma empresa chinesa, deve ser um alerta para nossas indústrias de que precisamos estar extremamente focados em competir para vencer” disse o presidente americano Donald Trump, há poucos dias, na Flórida, enquanto companhias americanas de tecnologia viam suas ações virarem cinzas no mercado de ações, com perdas na casa de 1 trilhão de dólares.
Isso foi fruto do singelo anúncio que uma startup chinesa ultrapassou os titãs corporativos de IA dos Estados Unidos: O DeepSeek – em chinês Shēndù Qiúsuǒ 深度求索 –, que significa Busca Profunda, foi a causa do choque. Com código-fonte aberto, os chineses roubaram o fogo dos deuses e entregaram à humanidade, permitindo desenvolvimentos autônomos da tecnologia de IA, o que pode alcançar o Sul Global.

(Foto: Domínio público / Rawpixel)
Esse evento surpreendente, emblemático e disruptivo é apenas uma imagem de um mosaico de dificuldades para Trump. O leitor atento desta coluna se recorda, por certo, que há duas semanas falávamos sobre o fenômeno do Xiaohongshu, ou Rednote, que foi o aplicativo mais baixado nos Estados Unidos. Agora, a bola da vez nesse sentido é o DeepSeek. Tudo isso no contexto do retorno de Trump à Casa Branca rodeado pelos barões das Big Techs.
Como se tudo isso já não fosse um grande problema, a completa incapacidade em lidar com os incêndios em Los Angeles, a epidemia de fentanil e, ainda, a demagogia fascista de Trump contra os imigrantes “ilegais” compõem um quadro tenebroso – a caça aos imigrantes, em particular, conduziu a crises diplomáticas com México, Brasil e, sobretudo, Colômbia, os três principais países da América Latina, a zona de influência imediata dos Estados Unidos.
A visão das trevas
O economista grego Yanis Varoufakis sentenciou em seu perfil no X/Twitter: “Costumava ser assim: os Estados Unidos inovavam, a China imitava e a Europa regulamentava; Hoje: a China origina, os Estados Unidos emulam e a Europa estagna”. Impossível não constatar as mudanças de vento. Nem Trump questiona isso: seu mote já era Make America Great Again (Fazer a América grande de novo), o MAGA, e agora ele mesmo admite o golpe.
Embora Trump inicie sua narrativa aludindo a uma era de ouro americana que nunca existiu, ele rapidamente sempre passa para que o interessa: um futuro no qual os Estados Unidos precisam rasgar sua fantasia, negando e destruindo a modernidade para se impor em um novo mundo no qual o país fica para trás, suplantado por civilizações não-brancas que avançam sem controle ou tutela.
Isso revela um padrão dos grandes movimentos de extrema direita. Os fascistas na Itália louvavam a antiguidade gloriosa dos romanos, embora na prática reproduzissem apenas a barbárie instalada após a sua queda. Os nazistas falavam de uma realidade mítico-esotérica dos arianos, mas igualmente repetiam a barbárie, só que sob a moderna tecnologia industrial. Trump fala em Abraham Lincoln, mas é apenas um barão ladrão entre barões ladrões.
Nos três casos, a praxe do passado idealizado serve para uma ruptura na forma de tecno-arcaísmo: um passado dourado que serve para ressuscitar o pior dos dias passados pelo topo das tecnologias, separadas de qualquer projeto de modernidade. Trump é apenas um retorno – como farsa – à era da grande traição posterior à Guerra Civil e o pacto espúrio de 1877, que gerou o segregacionismo.
As teorias que servem de verniz ideológico ao trumpismo são produzidas pela mesma oligarquia das Big Techs, como o inefável Peter Thiel: é a turma do Iluminismo das Trevas e o aceleracionismo de direita. Eles atacam o “Estado grande” para, no fim das contas, viver dele. Ao promover a América durona, Trump mira em um caubói de John Wayne, mas acerta no paranoico coronel Kurtz, personagem de Marlon Brando em Apocalypse Now.
O sonho como a grande commodity dos Estados Unidos
O tripé do poder americano consiste na hegemonia monetária do dólar, o poderio das forças armadas e, por último, o encanto gerado pela indústria cinematográfica hollywoodiana – cuja sede arde, vítima de incêndios florestais mal controlados. Esses três elementos, no entanto, são feitos de uma matéria peculiar: o sonho americano, como modelo de subjetividade geral que os Estados Unidos exportam. Quem não gostaria de ser um americano, afinal de contas?
A superpotência americana criou uma hegemonia nova, cujo cerne não é a força bruta ou a pujança de sua indústria, o que não consistiria em novidade alguma – e os europeus estariam muito à frente. Ela vive da construção de um novo homem, o americano, em uma nova Terra Prometida, nascida da tomada do território dos povos originários e baseada na mão de obra escrava africana, uma utopia norte-europeia e protestante.
Esse sujeito-projeto, que nasceu enquanto síntese messiânica de uma miríade de nações, funcionou como um gatilho do desejo: mesmo Ronald Reagan, no seu discurso derradeiro, pontificou que era possível não só viver nos Estados Unidos como, ainda, se tornar americano. Esse mecanismo despertou a imaginação, por mais de dois séculos, de incontáveis seres humanos dentro e fora dos Estados Unidos.
O sonho americano moveu, até mesmo, gerações de lutadores por direitos civis dos negros, os quais desejavam se tornar parte do sistema que se construiu sobre sua escravização – e que lhe denegou a igualdade perante a lei por mais de um século após a abolição da escravatura. Ou dos tantos hispânicos, recebidos pelas portas dos fundos como imigrantes “ilegais”, e que foram racializados e discriminados a todo o tempo, o que se estende aos seus filhos e netos.
A supremacia desse dispositivo funcionou, séculos a fio, como motivador de suas tropas e elemento de atração de quintas-colunas do lado adversário – como se pode ser contra uma nação que é a materialização da liberdade, uma sociedade na qual todos podem ser o que são? Aparentemente, no seu auge, os Estados Unidos encontraram seu esgotamento e o sonho americano se tornou um entrave.
Trump e o fim do sonho
De toda forma, ainda que o MAGA seja uma apropriação da campanha de Reagan nos anos 1980, Trump nega inclusive ele – nem é preciso chegar tão longe, do quão nonsense é a apropriação de Lincoln por Trump ou mesmo tomá-lo como um antagonista dos movimentos de inclusão promovidos por Franklin Delano Roosevelt ou John Kennedy. Tampouco o gesto de Trump é um passo em falso: ele é um sintoma.
A ascensão dos Estados Unidos como superpotência única após o colapso soviético despreocupou a oligarquia dominante. Ela avançou em um projeto de domínio global, mas também de concentração de riqueza. Os millennials, os nascidos do início dos anos 1980 até 1996, formam a primeira geração americana a conhecer a mobilidade social negativa, isto é, eles foram condenados a viver abaixo da condição de seus pais.
Com a elevação da indignação social, e até mesmo a surpreendente recuperação do termo “socialismo” nos Estados Unidos, a oligarquia dominante criou sua própria forma de populismo, cuja forma final foi dada sob a liderança do comunicativo Donald Trump. Mas as bases ideológicas disso repousam em doutrinas que, sob o nome da liberdade, miram sua destruição.
A velha fórmula fascista foi repaginada nos Estados Unidos, mas ela mira um futuro que nega o passado mítico que ela exalta. A fala inspiradora de Reagan em 1989, na verdade, ignorou que a nova realidade econômica que ele criou durante os anos 1980 destruiu a possibilidade do sonho americano. Isso não marca, ainda, uma derrota dos Estados Unidos, mas marca um giro possivelmente irreversível do país.
O débil governo de Joe Biden, um interregno entre as duas passagens de Trump pela Casa Branca, apenas mostrou a falência do sonho americano e sua substituição por algo mais mortal, embora mais óbvio. O que resta é uma negação deliberada do iluminismo armada com o que há de mais tecnológico no mundo, ou quase: os chineses estão chegando aí em uma longa marcha em passo apressado.
O fim do mundo como conhecemos
Os imigrantes latino-americanos nos Estados Unidos, sobretudo no último quarto de século XX, ilustram um cenário triste: a superpotência americana faliu seus vizinhos, ainda mais com a “crise da dívida” de 1982, e cooptou sua mão de obra na condição de trabalhadores precarizados, sem direitos e destinados a diminuir a média salarial dos trabalhadores recém-empoderados. Era o velho dividir para conquistar.
A fúria contra imigrantes hoje ilustra uma economia americana sem dinamismo, mas também a necessidade de criar um pânico racial que tende a aumentar a exploração do trabalho. Seja diminuindo ainda mais o papel dos “ilegais” como, ainda, criando um pânico político contra os trabalhadores “nacionais” racializados, isto é, os não-brancos. O recado é que é a “América”, como espaço interno, para os “americanos” – no fundo, os brancos.
Acaba, assim, a narrativa de que qualquer um pode se tornar americano e desfrutar das benesses desse sonho. Os frutos da “América”, agora limitados, cabem apenas aos que podem ser compreendidos como americanos. As portas do paraíso se fecharam. Tudo isso poderia ser uma forma de condensar as forças e permitir que o país avançasse, não fosse o cenário no qual chineses podem superar os Estados Unidos e os pobres optarem.
Quando mesmo americanos “legítimos” veem, via Xiaohongshu, que a vida na China não é o pesadelo que se dizia, e muitas mentiras do governo americano se revelam, a ideia de que a América deve ser tornada exclusiva é antes um sinal de fraqueza, não de privilégio, o que levaria a todos a se reunirem pelo espaço vital em direção a voos mais altos, talvez tomando a Groenlândia e o Canal do Panamá.
Os Estados Unidos, enquanto privilégio de uma classe e sua racialidade preferencial, se chocam contra a noção de futuro compartilhado dos chineses, seu racionalismo perseverante e seus ganhos tecnológicos que geram vários “momentos Sputnik”. Os Estados Unidos ainda podem vencer? Sim, mas não como fantasia edulcorada de potência includente, ainda que fatalmente de mentira.
(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.