O embate político às vezes acentua antagonismos pessoais e antipatias obssessivas demais. A necessidade de um ataque completo sobre um adversário faz com que se formem diversas alianças motivadas unicamente pelo desejo de destruir um inimigo comum. Mas, uma vez que o inimigo é derrubado, os problemas começam. O que vem depois? Para tomar decisões políticas, as áreas cinzentas nas quais a oposição tinha feito uma aliança possivelmente têm de ser desfeitas, o que traz desilusão. Antes de tomar conhecimento, o adversário odiado está de volta ao poder, não sendo mais tão atraente como no tempo da oposição.
A combinação de coalizões informais, políticas incertas e também decepção descreve o atual cenário político norte-americano. Um ano atrás, a derrota dos republicanos e o fim da presidência de George W. Bush trouxeram um momento de júbilo.
Mesmo que alguns eleitores cujo destino não tenha sido melhorado continuem colocando fé em Obama, seu júbilo parece ter evaporado. Pacifistas se desesperam com a intensificação da guerra no Afeganistão, a reforma da saúde abaixo das expectativas razoáveis, assim como a política de meio ambiente. A opinião geral está abaixo de ótimo, mas melhor que nada. Porém, contribui para um estado de desânimo. Paixão política é, mais uma vez, mudar de lado.
Tal impasse fortalece o poder dos lobbies e levanta questões sobre o real poder do presidente dos EUA. Obama não é Bush. Mas não ser Bush não é suficiente para dizer para onde Obama está se diringindo, ou fazer com que queiram segui-lo. Os EUA estão sofrendo: a taxa de desemprego tem aumentado muito, existem bairros inteiros com bens penhorados. O presidente se estende na conversa e nas explicações, no desejo de convencer. Mas o que isso acrescenta? No Cairo, ele condenou os assentamentos israelenses, mas se conformou com o fato de que eles continuam a se expandir. Ele apoiou uma ambiciosa reforma de saúde, mas quando o Congresso a amenizou, ele aceitou isso.
Num dia, ele anuncia que está enviando reforços ao Afeganistão. No outro, aceita o Prêmio Nobel da Paz. Mas existe um remédio para esta dissonância: um fluxo de palavras para equilibrar cada pronunciamento com o opositor. O refrão quase sempre acaba sendo “meus amigos progresistas dizem isso; meus amigos republicanos respondem aquilo. Os primeiros são exigentes demais e os segundos não estão cedendo o suficiente. Portanto, eu estou optando pelo caminho do meio”.
Obama incentivou os cadetes a “mostrarem comedimento no uso da força”. Ele disse ao júri de Oslo que o fato de que “às vezes a força ser necessária não é um convite para o cinismo: é um reconhecimento da história, das imperfeições do homem e dos limites da razão”. Os membros do júri também foram convidados a refletir sobre o exemplo do presidente Nixon que, apesar da “Revolução Cultural dos Horrores”, aceitou se encontrar com Mao em Pequim, em 1972. Sendo tão particular na questão dos direitos humanos, Nixon teve de superar a experiência, ordenando o bombardeio de cidades vietnamitas logo depois, e apoiando o golpe do general Pinochet no Chile. Obama não fez nenhuma menção disso em seu discurso. Como impecável centrista, ele preferiu pagar tributo a Martin Luther King e Ronald Reagan.
Ainda assim, tudo começou muito bem. Em novembro de 2008, quase dois terços da população com idade para votar (e 89,7% dos eleitores registrados) participaram da eleição. O homem que eles elegeram para a Casa Branca foi um candidato cuja trajetória sugeria a escala da mudança que viria: “Eu não me enquadro no estereótipo típico, não fiz minha carreira nos corredores de Washington”. E foi precisamente por isso que ele foi capaz de mobilizar eleitores jovens, negros e hispânicos tão bem, em uma proporção sem precedentes dos votos brancos (43%); de conseguir uma parcela maior de votos que Reagan em sua vitória em 1980 (52,9% comparado a 50,7%).
Obama poderia certamente se orgulhar e ter um mandato genuíno. Não existia ninguém para contestar. Os republicanos tinham sido totalmente derrotados. Sua filosofia neoliberal, que foi concisamente resumida pelo novo presidente (“Nós devemos dar mais e mais para aqueles que têm mais e esperar que a prosperidade acabe pingando para todos os outros”), ficou em farrapos. E os democratas alcançaram grande maioria em ambas as casas do Congresso.
Lições da história
Três meses antes de sua eleição, Obama tinha alertado: “O maior risco que nós corremos é tentar a mesma velha política com os mesmos velhos atores e esperar um resultado diferente. Vocês [partidários de base] têm mostrado que a história nos ensina – que em momentos decisivos como este, a mudança que nós precisamos não vem de Washington. Mudança vem para Washington. Mudança acontece porque o povo americano a exige – porque ele se levanta e insiste em novas ideias e nova liderança, uma nova política para um novo tempo”.
O ativismo de base, se pudesse supor, faria o possível para sacudir a inércia conservadora da capital, onde todos os lobistas estão. Um ano depois, enquanto não há risco de um movimento popular, existem inúmeros exemplos de legislação em curso que têm sido bloqueados, diluídos ou neutralizados pela “mesma velha política com os mesmos velhos atores”.
É verdade que o estereótipo de Obama é diferente dos seus antecessores, não apenas pela razão visível óbvia, mas também porque é incomum para a Casa Branca a incumbência para decidir como um homem jovem recusou a chance de ficar rico em Nova York e, ao invés disso, ajudou pessoas de bairros pobres de Chicago. Mas quando se olha para as escolhas de Obama para seu gabinete, a originalidade é menos impressionante.
Para cada ministro como Hida Solis (secretária de Trabalho de Obama, que tem ligações estreitas com sindicatos e promete uma ruptura com a velha política), existe uma secretária de Estado como Hillary Clinton, cuja posição diplomática é pouco diferente da do passado. Depois, há o secretário da Defesa, Robert Gates, um resquício da administraçào Bush. Ou o ministro da Fazenda, Timothy Geithner, que é próximo demais de Wall Street para querer ou ser capaz de reformá-la, ou o assessor econômico Lawrence Summers, arquiteto da desregulamentação financeira que colocou o país perto da catástrofe. E a diversidade de sua equipe acaba sendo não tão diversa assim: 22 das 35 nomeações de Obama possuem graduação de uma universidade de elite norte-americana ou britânica.
Desde o início do século 20, os democratas têm sido particularmente suscetíveis à ilusão tecnocrática de competência, pragmatismo, governo pelo “melhor e mais brilhante”, excelência e especialização que procuram impor sua vontade na política mundial, que suspeita desta demagogia permanente. Essa filosofia vê a mobilização de massa e populismo com desconfiança. É uma assinatura de Obama que é paradoxal, dada a sua trajetória (talvez para evitar qualquer confusão com o ativismo afro-americano).
No início, Obama esperava que a parte mais sensata do Partido Republicano pudesse se juntar a ele para tirar o país da situação difícil. Mas estender a mão para eles foi em vão. Ele recentemente comentou sobre esta rejeição. “Nós fomos forçados a tomar estas medidas, em grande parte, sem o apoio do partido de oposição, que, infelizmente, depois de ter presidido a tomada de decisão que levou à crise, decidiu entregar isso para outros resolverem”. Isso é um estranho, mas revelador, jeito de colocar as coisas. Ignora-se o fato de que entregar as rédeas do poder a Obama não foi uma decisão dos republicanos, e sim do povo.
Frenesi da mídia
Republicanos acham isso intolerável, daí a postura de resistência. Já em junho de 1951, houve um democrata na Casa Branca: Harry Truman. Como presidente, ele se dedicou à luta contra o comunismo e a União Soviética, à defesa do império e aos lucros da General Eletric. Mas, aos olhos de uma parcela significativa do eleitorado republicano, ele foi um traidor, não importa o que ele fez. Por quatro anos, o senador Joseph McCarthy aterrorizou os progressistas norte-americanos, artistas, sindicalistas e altos oficiais, inclusive militares.
Nós ainda não chegamos a este ponto. Mas a atmosfera está novamente sendo envenenada pela paranoia de ativistas de direita levada ao frenesi por talk shows de rádios, material “noticioso” da Fox News, editoriais do Wall Street Journal, igrejas fundamentalistas e rumores malucos espalhados pela internet. Eles invadem a mente e bloqueiam o pensamento sobre outras coisas. Milhões de norte-americanos que são apaixonados por política estão convencidos que o presidente mentiu sobre seu nascimento e é inelegível para ocupar a Casa Branca porque ele nasceu fora do país. Eles estão convictos que sua vitória, por 8,5 milhões de votos, foi resultado de fraude, uma “conspiração em escala imensa”…
Eles detestam a ideia de ter um líder que passou dois anos em uma escola muçulmana na Indonésia, um ex-ativista de esquerda e intelectual cosmopolita. Eles têm uma crença inabalável que a reforma de saúde é apenas um precursor da criação de painéis de morte, tribunais que irão decidir quais pacientes receberão tratamento. Estes grupos formam o núcleo duro do Partido Republicano. Eles governam com mãos de ferro sobre os representantes com os quais o bom centrista Obama tem consideração ou está negociando seu pacote de estímulo, a reforma do seguro saúde e a regulamentação financeira.
Leia mais:
Obama: um ano em cima do muro (parte 2)
Artigo publicado originalmente no Le Monde Diplomatique.
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