Rezam as lendas sobre a sabedoria política mineira que um eminente cacique, perguntado sobre determinado posicionamento, teria respondido com o brilhante e hermético “Minas está onde sempre esteve”. Nos tempos que correm é legítimo perguntar se a “sabedoria mineira” é um mito com capacidade para sobreviver aos Aécios, Zemas e Kaliles e, ao mesmo tempo, é inescapável perguntar onde está Lula.
O “programa” de Lula é um dos temas mais recorrentes do debate midiático, seja nos órgãos corporativos, seja nos blogs e veículos digitais regulares ou nas mal chamadas redes sociais. Para os ventríloquos do big money, “Lula não tem Programa”. Para a esquerda, da namastê à radical, passando pela identitária e pela cirandeira, seu programa é insuficiente ou equivocado.
Temos assim a curiosa situação de que entre os, digamos assim, bem-informados, de um lado e de outro, a avaliação de Lula é pior do que nas últimas pesquisas de opinião.
O curioso é que entre a direita neoliberal encastelada nos grandes órgãos e a autoconsiderada esquerda dos blogs ou veículos digitais prevaleça o mesmo maniqueísmo, fruto de uma indisfarçável dificuldade em aceitar que um mundo em evidente transição para outra ordem geopolítica não é o cenário moralmente reconfortante de uma luta entre o bem e o mal.
Num momento de estabilização da economia e mínima recuperação do poder aquisitivo dos setores mais pobres da população, que por certo o governo tem muita dificuldade em comunicar, compreende-se o interesse da mídia neoliberal em desviar o foco do debate para qualquer assunto mais ideologizável.
Já foi a Ucrânia, já foi Gaza, não foi Assange apenas porque a mídia hegemônica não conseguiu montar uma contranarrativa minimamente aceitável e agora volta a ser a Venezuela.
E aqui estamos porque, depois do fracasso das sanções contra a Rússia, a eleição da Venezuela e a possibilidade de derrubar Maduro passou a ser o sonho de consumo do big money ocidental. E entre nós, pareceu a possibilidade de desviar as conversas da queda do preço dos alimentos ou do crescimento – modesto, mas crescimento – do emprego formal ou da relativa estabilidade da moeda nacional num cenário de dúvidas e insegurança internacional.
Talvez já seja de agradecer que nem a Lili das apurações irrelevantes tenha se atrevido a cravar que a posição do Lula sobre o Campos Neto abalou o Tesouro ianque!
Menos de agradecer é que sejamos obrigados a tomar uma posição pró ou contra Maduro num quadro em que evidentemente nem é possível ter certeza de sua vitória nem é razoável aceitar a suposta vitória de González, esse aprendiz de candidato a Guaidó II.
Não há como negar que a Venezuela foi jogada numa crise brutal porque teve seus ativos internacionais sequestrados de maneira infame pelo sistema bancário estabelecido desde Bretton Woods como instrumento de controle hegemônico paralelo às mais bem equipadas forças armadas do planeta.
Também não há como negar que Maduro não conseguiu evitar a fuga de parcela de sua população para o Brasil ou outros países americanos. E não se compare com a situação de Cuba: esta, apesar de sessenta anos de bloqueio brutal e de ter uma economia apoiada em produtos primários, conseguiu manter sua população mais pobre com educação, esportes e saúde pública de qualidade.
Como já alertou uma observadora arguta, a migração anticastrista concentrada em Miami é composta por brancos, enquanto a maioria da população pobre cubana é sabidamente negra. Não é o que ocorre com os venezuelanos que encontramos em serviços subalternos nas cidades brasileiras.
É evidente que o discurso do Império e de suas línguas de aluguel na nossa mídia corporativa (e para ser justos, na mídia de todo o “Ocidente”) é mera hipocrisia. O deep state não está preocupado com a democracia na Venezuela, assim como não está preocupado com democracia na Arábia Saudita, no Egito ou na Polônia.
O problema da Venezuela é ter as maiores reservas de petróleo do planeta. Ponto. A OEA de Almagro se transformou num organismo risível desde o momento em que sua garantia de fraude na eleição de Evo Morales foi desmentida por importantes universidades estadunidenses.
Mas isso não transforma Maduro num herói anti-imperialista, legítimo herdeiro do socialismo do século XXI, ao qual tenhamos a obrigação de nos alinhar, antes ou depois do chá de camomila que ele nos receita.
Revoluções degeneram, como aprendemos com a soviética e assistimos com a sandinista. Reconhecê-lo não implica alinhar-se ao discurso envergonhado dos intelectuais que abdicaram de toda posição crítica e passam a reproduzir a voz do Império, como hoje o faz a intelligentsia alemã, especialmente no caso de Gaza.
Lula apanhou ao dizer que a guerra era na Ucrânia, mas entre EUA e Rússia, o que hoje está mais do que claro. Se negou a ser fotografado com Zelenski, o do ensaio na Vogue, num gesto de dignidade criticado pela direita. Lula foi o único chefe de estado relevante que defendeu a libertação de Assange e foi o primeiro a chamar de genocídio o massacre palestino, posição hoje aceita pela maioria dos países do planeta.
Em todos esses momentos foi criticado à esquerda e à direita. Talvez se possa dizer que no meio da turbulência, Lula, como Minas, está onde sempre esteve.
(*) Carlos Ferreira Martins é Professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP em São Carlos.