Nos dias 10 e 11 de julho ocorreu, em Washington (EUA), a cúpula da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). O encontro, organizado com o objetivo de marcar o 75º aniversário da organização, reverberou em todo o globo: o odor de enxofre e os tambores de guerra puderam ser sentidos e ouvidos por todos que estiveram minimamente atentos.
Como prenúncio do que estava por vir, dois dias antes Volodymyr Zelensky andou em Varsóvia. De lá, o mandatário ucraniano, o primeiro-ministro polonês, Donald Tusk, e o presidente da Polônia, Andrzej Duda, fizeram o anúncio de um acordo de defesa mútua, segundo o qual a Polônia oferecerá treinamento a militares ucranianos, poderá abater objetos voadores suspeitos na região ocidental da Ucrânia e a Ucrânia poderá abater objetos que sobrevoem o espaço aéreo polonês.
O país europeu, que é membro da OTAN desde 1999, está posicionado em uma região delicada. Faz fronteira com a Alemanha (a oeste), com a República Tcheca e a Eslováquia (ao sul), com a Lituânia, a Bielorrússia e a Ucrânia (a leste), e com Kaliningrado (ao norte), que integra a Federação Russa. Ainda nas horas que antecederam a cúpula da OTAN, o recém escolhido primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, declarou à imprensa que seu país permitirá que a Ucrânia utilize como bem entender os mísseis cruzeiros britânicos, capazes de atingir o território russo. Até então, a Inglaterra dizia permitir seu uso apenas defensivo.
A cúpula da OTAN, além de marcar os 75 anos de existência da aliança, foi também a primeira com a participação da Suécia, que aderiu ao tratado neste ano, seguindo a Finlândia, que fez sua adesão em 2023, e ampliando a presença da organização na região da Escandinávia. Os países que integram a OTAN passam a integrar o acordo de defesa mútua e podem sediar bases militares e receber equipamentos da aliança. Há hoje cerca de duzentas bases da OTAN na Europa, em grande parte com a presença de soldados dos EUA (um efetivo superior a cem mil soldados). Para além da saudação aos dois membros recentes, o secretário-geral da organização, Jens Stoltenberg, ofereceu calorosas boas-vindas ao presidente da Ucrânia, enfatizando o desejo de que o país integre, “em breve”, a aliança. Todos sabem o que isso significa. Estando a Ucrânia em guerra com a Rússia, uma adesão daquele país ao Tratado do Atlântico Norte formalizaria, de uma vez por todas, uma situação de fato (mas até o presente escamoteada): a guerra passaria a ser oficialmente um conflito entre Rússia e o conjunto da OTAN, dada a obrigação de “defesa mútua” de todos os membros da aliança.
O secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, fez seus próprios anúncios no contexto da cúpula. Para além das falas protocolares sobre a importância da OTAN para a “defesa mútua” dos países que a integram, deu uma declaração que soma-se à retórica de escalada bélica do britânico Starmer e do acordo Ucrânia-Polônia: “Aviões de combate F-16 sobrevoarão a Ucrânia neste verão”, anunciou. Os aviões F-16 virão tripulados dos Países Baixos e da Dinamarca. Além disso, “novos sistemas Patriot de defesa aérea tática estarão em funcionamento para proteger cidades e infraestruturas críticas, como centrais elétricas”.
Sobre as baterias Patriot também falou Joe Biden. Para ele, os esforços de armamento para a Ucrânia são uma mensagem para Moscou, de que “nosso apoio à Ucrânia é forte e inabalável”. Quanto aos aviões F-16, a mensagem é muito clara. Blinken afirmou que os aviões serão a garantia de que Putin não poderá vencer a OTAN. Certamente ele referia-se ao fato de que essas aeronaves têm uma característica que as tornam uma ameaça muito mais grave: são projetadas para carregar e despejar armas atômicas.
Atômica é também a declaração final da cúpula. Não fosse a gravidade do documento, poder-se-ia destacar suas qualidades literárias, como a objetividade e a clareza do texto. Talvez um dos documentos (anti) diplomáticos mais sinceros da história recente, a carta da cúpula comemorativa dos 75 anos da OTAN é uma completa e detalhada declaração de guerra a um certo “lado” do mundo e a reafirmação nítida e sem filtros de uma determinada ordem mundial a ser defendida. Destaco aqui alguns dos pontos mais (por assim dizer) escandalosos, não sem antes recomendar enfaticamente a leitura da íntegra:
No parágrafo 3, temos que “a invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia destruiu a paz e a estabilidade na área euro-atlântica e minou gravemente a segurança global”. Para a OTAN, a Rússia segue sendo a “ameaça mais significativa e direta à segurança dos aliados”. Cita ainda o terrorismo, “em todas as suas formas e manifestações”, como “ameaça assimétrica”. No parágrafo seguinte, a declaração da cúpula descreve o cenário atual como de “competição estratégica, instabilidade generalizada e choques recorrentes”. Cita o continente africano e o Oriente Médio como espaços cujos acontecimentos em curso têm efeitos sobre os países da aliança e seus “parceiros”, especialmente em temas como imigração. O parágrafo faz questão de destacar “ações desestabilizadoras do Irã”, embora não explique que ações são essas – acaso não são os países da “aliança” que mantêm sanções econômicas severas contra o Irã? Pois o texto sequer as cita.
Em seguida a declaração dirige suas acusações à República Popular da China (RPC), cujas “ambições declaradas e as políticas coercitivas” desafiam os interesses dos membros da OTAN e desafiam sua “segurança e valores”. Segundo a declaração, há grande preocupação com China e Rússia, com sua “parceria estratégica cada vez mais profunda” e suas “tentativas de reforço mútuo para minar e remodelar a ordem internacional baseada em regras”. Mais adiante, o texto menciona as ameaças “híbridas”, que vão do confronto bélico propriamente dito à guerra de informação, ataques cibernéticos e sabotagens. A Rússia e a China seriam os atores principais dessa disputa. Segundo o documento, os dois países realizam “atividades cibernéticas e híbridas maliciosas sustentadas, incluindo desinformação”. Quanto a isso, a aliança declara sua disposição em seguir fazendo investimentos vultuosos a fim de impor uma derrota a seus “inimigos” também nesse campo.
Além da Rússia e da China, são listados aliados considerados também inimigos da aliança: Coreia do Norte, Irã e Bielorrússia. Quanto a esta, o parágrafo 24 diz que “a Bielorrússia continua a possibilitar esta guerra [contra a Ucrânia] ao disponibilizar seu território e infraestrutura. O aprofundamento da integração política e militar da Bielorrússia pela Rússia, incluindo a implantação de capacidades militares e pessoal russo avançado, tem implicações negativas para a estabilidade regional e a defesa da aliança.”
Sobre a China, o documento apela para que, “na qualidade de membro permanente do Conselho de Segurança” da ONU, e, portanto, “com uma responsabilidade particular de defender os propósitos e princípios da Carta da ONU”, cesse “todo o apoio material e político ao esforço de guerra da Rússia. Isso inclui a transferência de materiais de uso duplo, como componentes de armas, equipamentos e matérias-primas que servem como insumos para o setor de defesa da Rússia. A RPC não pode permitir a maior guerra na Europa na história recente sem que isso tenha um impacto negativo em seus interesses e reputação”.
Após listar seus inimigos, os países da OTAN congratulam-se com “o fato de mais de dois terços dos aliados terem cumprido seu compromisso de pelo menos 2% do PIB em gastos anuais com defesa”, além de elogiar “os aliados que o excederam” – já tratamos desse compromisso aqui. Parte significativa do documento trata especificamente dos esforços de ampliação das capacidades bélicas da aliança, o que inclui a produção e o desenvolvimento de armamentos, inclusive nucleares, além de esforços nos campos das tecnologias químicas e biológicas, além dos esforços, já mencionados, nas disputas de caráter híbrido, que envolvem informação e cibersegurança.
Além disso, o documento mantém a retórica de ampliação da OTAN, “aberta a todos os países interessados”, o que inclui a Ucrânia, com quem a aliança informa que realizará uma reunião em breve e, lê-se nas entrelinhas, o conjunto de países no entorno da Federação Russa que ainda não integram o tratado. Para além do escopo europeu (a declaração menciona a “colaboração” com a União Europeia), o documento ousa ir adiante, para além do Atlântico Norte: “Nós nos reuniremos com as lideranças da Austrália, Japão, Nova Zelândia e República da Coreia e a União Europeia para discutir desafios de segurança comuns e áreas de cooperação. O Indo-Pacífico é importante para a OTAN, dado que os desenvolvimentos naquela região afetam diretamente a segurança euro-atlântica. Saudamos as contribuições contínuas de nossos parceiros da Ásia-Pacífico para a segurança Euro-Atlântica”. Estão anunciadas, assim, as intenções de expansão da OTAN para os países do Pacífico, num passo que vai além da recente constituição da Aukus, integrada por Austrália, Reino Unido e EUA.
Os organizadores das comemorações dos 75 anos da OTAN conseguiram, de fato, que essa fosse uma data marcante. Está lançada a nova “cortina de ferro”: de um lado o eixo atlântico, que busca abraçar também uma fatia do Pacífico. De outro, “os outros”: aqueles que não se adaptam ao que os atlantistas gostam de chamar de “ordem internacional baseada em regras”. Que fique claro: certas regras, as que atendem aos interesses dos EUA, e secundariamente dos seus aliados. A resposta ao não alinhamento é clara: sanções econômicas e tambores de guerra. A ameaça nuclear paira sobre todos e, justamente porque uma guerra nuclear significa a destruição mútua, ela é o pano de fundo perfeito para a nova divisão do mundo. Nos seus 75 anos a OTAN, criatura da guerra fria, ressurge como arquiteta de uma nova
bipolaridade, mecanismo de contenção ao nascimento de uma ordem mundial
multipolar.
(*) Rita Coitinho é socióloga e doutora em Geografia, autora do livro “Entre Duas Américas – EUA ou América Latina?”, especialista em assuntos da integração latino-americana.