Palestina e o retorno da política social genocida
O cessar-fogo assinado por Israel e o islã político parece ter tido como fim iniciar um novo estágio da política social genocida contra o povo palestino
Apesar do acordo de cessar-fogo assinado entre o Estado sionista e o islã político em 17 de janeiro de 2025 – intermediado por Egito, EUA e Catar –, a política social genocida do Estado sionista contra o povo palestino retornou com força. Em 20 de março passado os bombardeios insanos contra populações civis foram reiniciados, agora sem o concurso de tropas terrestres. Neste curtíssimo período de paz relativa na Faixa de Gaza (já que muitos bombardeios foram realizados ainda no decorrer da primeira fase do processo de cessar-fogo) a fúria genocidária e higienista do Estado sionista voltou-se com muita intensidade para a Cisjordânia. Num primeiro olhar, parecia que uma nova onda de limpeza étnica na parte oriental da Palestina ocupada era a intenção por trás do cessar-fogo. As causas e consequências destas situações tornaram-se meios para a compreensão da política social genocida do Estado sionista como um todo, desde o seu início, em outubro de 2023.
Um dos primeiros aspectos a serem observados nesta retomada com força total da política social genocida é o fato de que houve uma desistência do governo sionista (mesmo que implícita) do resgate dos cativos na Faixa de Gaza. Nos parece que a máxima propalada pela ex-primeira ministra Golda Meir (“os palestinos preferem odiar os israelenses mais do que amar seus próprios filhos”) adquiriu um sinal inverso, dada a já demonstrada incapacidade do Estado sionista em alcançar os cativos pelo concurso do poder militar ou da inteligência. Somente quatro deles passaram por esta experiência.

(Foto: IDF)
Após a vitória na eleição presidencial norte-americana de Donald Trump, foi desenvolvida uma nova percepção da questão da aplicação da política social genocida, mesmo que apenas levemente diferenciada em relação ao que vinha sendo implementado pela administração Biden, pois esta mantinha a promoção de uma dose cavalar de apoio à política social genocida. A orientação da nova administração norte-americana impôs, no entanto, num primeiro momento, um acordo de cessar-fogo que deveria ser implementado por etapas. Nestas, os nomes dos reféns palestinos sob tutela do Estado sionistas, tratados de forma brutal no seu cativeiro – causa da reação do islã político em 7 de outubro de 2023 –, teriam sua libertação negociada nome a nome, seguindo regras absurdas impostas pelo acordo de cessar-fogo. Assim, assistimos à libertação na primeira etapa do processo de negociação de centenas de homens, mulheres, menores (sic) e idosos palestinos presos sem causa (situação eufemisticamente chamada pelos sionistas de “prisão administrativa”) e sem acompanhamento advocatício, com saúde e integridade emocional fortemente abaladas. Os que possuíam penas de prisão promulgadas pelos tribunais sionistas enfrentaram acusações absurdas e extenso tempo de manutenção sob custódia.
Notamos, já que apenas a primeira fase do processo foi efetivada, que o que esteve em jogo não foi o conteúdo, mas a forma de apresentação da política social genocida, pois buscou-se indicar publicitariamente que uma chance para negociações foi oferecida mas inviabilizada pelo islã político. Para o público interno, o governo sionista amainou, neste curto espaço de tempo de cessação de hostilidades que promoveu a liberação de dezenas de seus cativos, a oposição das vozes insatisfeitas dos parentes e simpatizantes da causa destes, que pugnavam por negociação para a libertação integral de todos os remanescentes. Mas este movimento foi alcançado pela revelação da verdadeira intenção do cumprimento do cessar-fogo e de troca de cativos: ganhar tempo para a reestruturação da continuidade da política social genocida, agora em novo contexto, já que diversas novas situações foram criadas no Oriente Médio depois do início dos ataques à Faixa de Gaza em outubro de 2023.
O curto cessar-fogo trouxe um certo alívio para o desgaste das tropas ocupantes, depois de meses de luta campal em confronto com a forte resistência do Hamas. Também a inviabilidade da invasão física do Líbano pelas tropas sionistas deve ter contado na decisão do estabelecimento do curto cessar-fogo. Até porque este não foi totalmente respeitado pelo Estado sionista que ocupa partes do território libanês.
Este processo, percebemos agora, foi um ardil para que tanto a nova administração norte-americana quanto o Estado sionista redimensionassem passos e alternativas para formatar a ação militar e política a ser adotada numa conjuntura regional em rápida evolução. O que defendemos neste artigo é que no curto período de cessação das agressões ao povo palestino, formou-se um novo ente coletivo: uma coalizão militar orgânica entre Estado sionista e EUA. No presente momento, esta consorciação está se estruturando para uma intervenção em larga escala em algum país do Oriente Médio.
A política social genocida produziu indiretamente a extensão da penetração do exército sionista no sul do território sírio. Provavelmente eles pretendem transformar esta ocupação, num primeiro momento, numa espécie de protetorado e buffer de contenção de eventuais ataques ao território sionista. A invasão ao país vizinho está também consorciada à ruptura da conexão do “eixo da resistência” que vinha utilizando o território sírio como elo de ligação do Irã com os movimentos que ele apoia no Líbano e na Palestina. Num segundo momento intencionam (talvez) estabelecer esta região como uma área a ser incorporada de forma definitiva ao território do Estado sionista, que neste caso passaria a fazer parte do Grande Israel. Neste caminho, a extensão da política social genocida também está sendo aplicada contra o povo sírio. A ocupação sionista do território do país bombardeia localidades em todo o território (excetuando o pertencente aos curdos), sob a alegação de eliminar resquícios do antigo regime ou se contrapor ao poder da Turquia. Os novos governantes formais da Síria também aplicam políticas sociais genocidas, marcadamente contra opositores políticos vinculados ao antigo regime, os alawitas e os cristãos.
Um novo governo libanês foi instaurado e sua posição contra o Hezbollah ainda está por ser testada. Este não rompeu com o pacto político clássico da divisão do poder no Líbano, que inclui a participação na vida política institucional do Hezbollah, mas é um governo que lança laços visíveis de retomada da conexão com o Estado sionista e com os EUA. Seus movimentos até agora não demonstram uma posição definitiva favorável a um ou outro polo da vida política libanesa, mantendo-se ainda suficientemente confiável para os envolvidos. Também aqui o bombardeio do sul do Líbano e do Vale do Bekaa está ocorrendo em nome do combate ao islã político.
Neste mesmo interregno, ocupado pela primeira fase do processo de cessar fogo, os EUA passaram a fornecer ao exército sionista as sofisticadas bombas de 2 mil libras, cujo fornecimento havia sido sustado pelo governo de Joe Biden. Nota-se que, de apoio material, econômico e político para o Estado sionista, os EUA evoluíram sua intervenção no Oriente Médio, tornando-se um ator presente com armas e tropas que, ao que tudo indica, permanecerão por largo período na região. Na administração anterior já existiam as sementes desta junção de forças, mas esta não havia sido consolidada já que as autoridades norte-americanas legaram ao Estado sionista apontar o caminho que desejassem para a população palestina. O presidente Donald Trump assumiu para si a formatação de um compromisso com o eventual futuro da Faixa de Gaza sem a população palestina, através da formulação da proposta de incorporar o território como uma propriedade pertencente ao seu país e, em seguida, promover investimentos imobiliários para viabilizá-lo economicamente.
Os houthis no Iêmen estão sendo atacados continuamente pela aviação estadunidense, indicando que a aliança orgânica já foi acionada, uma vez que um dos alvos principais dos mísseis lançados é contra o território do Estado sionista. É o que podemos perceber pelas demais providências estratégicas que estão sendo tomadas pela inquebrantável coalizão Estado (sub-imperialista) sionista/Estado imperialista (EUA) face à maior complexidade da situação do Oriente Médio surgida após setembro de 2023. A primeira delas está se revelando neste momento: é a tentativa de imposição de um acordo de paz humilhante para a República Islâmica do Irã. Condicionado pelo deslocamento massivo de tropas e armas norte-americanas para o cenário do Oriente Médio, a coalizão escala o eventual futuro conflito com o país persa por meio de exigências já feitas outrora para o Iraque e a Líbia: desarmamento em troca de paz. Com dinâmicas e circunstâncias distintas, os resultados desta exigência por parte do imperialismo ocidental aos dois governos foram desastrosos para ambos os países. Notícias fornecidas pelos meios de comunicação delineiam o que já há muito vem sendo tratado por analistas e formuladores da política externa norte-americana como o encaminhamento que os norte-americanos desejam para o eventual desenvolvimento de poderio nuclear iraniano: o uso de bombas atômicas estratégicas para alcançar os equipamentos do seu programa nuclear localizados nas profundezas do relevo montanhoso.
A segunda perna da coalizão é executada mais diretamente pelo Estado sionista: a virtual expulsão da Turquia dos benefícios da sua participação na derrubada do governo de Bashar al-Assad. As ameaças de confronto para alcançar este objetivo foram demonstradas na realização de uma reunião do Gabinete de Guerra comandando pelo primeiro-ministro sionista com o fim específico de tratar desta situação. Nela foi declarado explicitamente o provável futuro embate entre os Estados sionista e turco. Aqui o Estado sionista procura inibir qualquer papel no território sírio do poderoso Estado turco, que passa por uma crise política e macroeconômica severa e necessita de definições objetivas sobre a nova modelagem do Estado sírio em termos de alocação de áreas de influência. Neste processo fica claro que o Estado sionista não aceitará qualquer resquício de unidade territorial comandada por uma potência externa que tenha capacidade de articular algo diferente do que parece ser sua meta: a balcanização da Síria.
Uma terceira parte desta nova conjuntura da aplicação da política de estancamento temporário da política social genocida através da formatação da coalizão de guerra pode ser vista na elaboração de uma estratégia para lidar com um terceiro fio desencapado: o Egito. Tendo participado como mediador da delicada situação de aplicação da política social genocida do Estado sionista contra o povo palestino, o Egito possui vínculos carnais com as partes envolvidas. Tendo ocupado a Faixa de Gaza até 1967, possuindo fronteira e um acordo com o Estado sionista de desmilitarização tanto da península do Sinai quanto do corredor Filadélfia, já na área palestina, o Egito é o país que oferece as melhores condições (do ponto de vista da limpeza étnica pretendida pelos sionistas) para uma saída rápida da população nativa de seu país. Tendo desrespeitado flagrantemente os acordos de Camp David (1979), o Estado sionista se posicionou no interior do corredor Filadélfia depois da invasão de Raffah, realizando obras de infra-estrutura no seu interior e visivelmente potencializando a ameaça de ruptura da barreira física construída pelo Estado egípcio que separa o país árabe da Palestina. Por seu turno, temeroso do descumprimento do acordo de 1979 e de sobreaviso com a possibilidade criminosa do Estado sionista expulsar à revelia os palestinos para o seu país, o governo egípcio posicionou inúmeras peças de artilharia na península do Sinai. Sua mensagem foi a de indicar que, caso haja o derrubamento da barreira física, com a expulsão da população palestina para aquela localidade, irá reagir militarmente.
O Estado sionista, na sua arrogância profissional, também rangeu seus dentes cheios de sangue e passou a esbravejar contra a política de defesa adotada pelo governo egípcio. Outras vulnerabilidades do país também devem ter sido exploradas pela coalizão pela guerra recém formada no Oriente Médio, tal como os graves problemas econômicos (basicamente a dívida externa egípcia). Esta é uma forma de cooptar a posição egípcia para a defesa dos interesses nacionais realizada pelo governo de Abdel Fatah al-Sisi. A troca do perdão da dívida pela expulsão do povo palestino para a península do Sinai já foi posta na mesa anteriormente pelo primeiro-ministro sionista.
Irã, Turquia, Líbano, Iêmen e Egito estão demonstrando na prática que o raio de ação da política social genocida praticada pelo Estado sionista contra o povo palestino está na clave da estruturação da implementação das três variáveis que vimos analisando nos artigos publicados anteriormente aqui no Opera Mundi: a) sionismo externo; b) pax isralensis; e, c) Grande Israel. Uma análise que precise a articulação destes três fatores, formatando uma espécie de teoria do “sistema sionista”, ainda não é totalmente possível, pois depende da evolução do que ocorrerá no futuro do Oriente Médio.
Nosso olhar nesta publicação se volta para o falecimento do jovem brasileiro-palestino Walid Khalid Ahmad, de apenas dezessete anos de idade, assassinado em prisões sionistas. Este é mais um fruto da política social genocida contra o povo palestino. Seu sacrifício não possui explicações objetivas (e nem será possível elaborar alguma) pelos seus algozes. Como tantos palestinos, desde o início do século XX, Walid sucumbiu à política social genocida do Estado sionista contra o povo palestino por parte de uma vasta política de dominação imperialista dos povos, de submissão da classe trabalhadora através da violência e da restrição das liberdades públicas que estão associadas à democracia. Que o mártir Walid encontre repouso entre os justos. Allahu akbar!
Este artigo é a 19ª parte da série “Gaza, ano zero: as raízes do Holocausto do povo palestino”. Leia aqui as outras partes.
(*) Bernardo Kocher é Professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense
