Em um novo giro repentino, os Estados Unidos fizeram uma nova aposta eleitoral em Donald Trump, um presidente que terminou seu mandato anterior derrotado. Nos últimos quatro anos, os democratas não souberam aproveitar a chance que tiveram em 2020. Isso terá repercussões para o Brasil, sobretudo pelo inédito e quase automático alinhamento que os polos políticos do nosso país passaram a ter em relação aos Estados Unidos.
Depois de ter quebrado as bolsas de apostas em 2016, ao bater Hillary Clinton no Colégio Eleitoral, Trump confirmou seu favoritismo este ano, embora com uma margem mais tranquila do que o esperado. Pela terceira vez, os institutos de pesquisa americanos subestimaram os votos em Trump, dessa vez em uma disputa contra a democrata Kamala Harris, que passou o último quadriênio como vice de Joe Biden.
Há oito anos, a média dos agregados das pesquisas registrou 4 pontos a menos do que Trump teve nas urnas. Em 2020, foram 3 pontos a menos do que disse a apuração. Agora, a média das sondagens está registrando cerca de 2,5% dos votos a menos – com 97% de apuração totalizada, no ritmo de tartaruga tradicional da contagem de votos americana. Na melhor das hipóteses, as pesquisas tornaram a falhar, e os institutos não aprenderam nada.
Por sinal, Trump viu seus votos totais subirem em cerca de 2 milhões em relação a 2020, mas os democratas tiveram 9 milhões a menos, em um quórum de votação sensivelmente menor. Apesar disso, há sim um fator de virada, porque a demografia do voto em matéria de idade, religiões, regiões do país e áreas geográficas – urbana, suburbana ou rural – variou pouco entre 2020 e 2024 segundo a tradicional pesquisa do Edison Research Group.
A vitória de Trump, tanto no Colégio Eleitoral quanto no voto popular, foi rapidamente reconhecida pela administração Biden e pela campanha de Kamala. Ela confere uma legitimidade jamais obtida pelo presidente retornado. E isso redesenha o jogo geopolítico global, graças às diferenças de tática entre os dois grandes partidos americanos. Para o Brasil, voltamos a ter um governo desalinhado com Washington como em 2021-22.
Como Trump venceu: Ucrânia e Palestina
Como apontei neste espaço no começo do ano, dois fatores já se mostravam com um peso considerável: a insatisfação dos eleitores democratas com a economia sob Biden, manifestada pelo aumento do endividamento familiar – causado por juros altos – e ligeira queda salarial. Consequências imediatas, entretanto, da guerra na Ucrânia; e a isso somaram-se as manifestações massivas pela Palestina, enquanto Biden apoiou Israel no massacre de Gaza.
O mito da economia bem-sucedida, basicamente, considerava dados formais de emprego, mas não a qualidade deles. Segundo o Departamento do Trabalho dos Estados Unidos, entre o fim de 2019 e o 3º trimestre deste ano, os salários caíram por volta de 1% em termos reais. Tudo isso causado pelo tombo no poder de compra em 2022, ano em que a guerra na Ucrânia fez o preço do petróleo explodir. Entre 2016 e 2020, com Trump, os salários cresceram quase 8%.
A contenção da inflação ucraniana se deu com o aumento da taxa de juros – e sua manutenção em termos elevados pelos últimos três anos. Enquanto economistas falam bobagens como “normalização da cadeia de suprimentos”, eles omitem que o preço do barril foi contido com juros altos que valorizaram artificialmente o dólar – isto é, enquanto o barril se manteve alto nas outras moedas, ele deixou de crescer em dólar.
Qualquer pessoa que tenha estudado a crise de 1982 sabe que um dos privilégios dos Estados Unidos, por emitir o dólar enquanto moeda de troca internacional, é poder bombear inflação para fora da sua economia. Por isso, a inflação americana de 2023 foi a metade da registrada em 2022, enquanto o mundo demorou mais a derrubar o processo inflacionário. No entanto, isso não ocorreu sem custos, com o endividamento das famílias americanas explodindo.
A queda do poder real dos salários em 2022 foi seguida de dois anos de estagnação salarial e mais dívidas e inadimplência, em um país no qual o crédito é vital. Isso tornou a economia real pior sob Biden do que Trump, aceite-se ou não. E esse fenômeno esteve conectado com o enorme esforço da guerra por procuração na Ucrânia, onde o adversário russo, ao ser sancionado, gerou um quadro de inevitável aumento do preço do petróleo em escala mundial.
As variações do voto por idade demonstram bem isso: a presença dos eleitores acima dos 65 anos saltou 6 pontos percentuais nessa eleição, e Kamala conseguiu avançar e empatar com Trump nesse grupo, depois de Biden ter perdido por 5 pontos ali em 2020. O ponto é que em todas as outras faixas de idade, Trump cresceu. Não é, portanto, sobre aposentados conservadores, mas por meio das pessoas economicamente ativas que Trump voltou ao poder.
Há, junto disso, o fator muito completo de que a manutenção e aumento das sanções americanas sobre a China na administração Biden contribuíram para tornar importações chinesas menos baratas do que poderiam ser. E que essa política de Biden, igualmente, irritou os chineses, que frearam sua política histórica de comprar títulos da dívida americana, que sempre contribuiu para juros mais baixos nos Estados Unidos.
O cálculo sempre foi simples. Os chineses exportavam com um ótimo custo-benefício bens de consumo, mas usaram entre os anos 1980 até a guerra comercial os excedentes na balança comercial para financiar a dívida americana – o que permitiu os Estados Unidos terem um grande déficit público sem precisar apelar para juros altos no mercado. A fome chinesa era por consumidores americanos, não por agiotagem.
Em cenário de disputa com os chineses, prejudicando o custo das suas importações e o financiamento de sua dívida, convergiu, nos últimos quatro anos, o encarecimento do petróleo causado pela decisão de expandir a OTAN até o Mar Negro. Sem entrar no mérito das razões de Biden, o plano só teria funcionado se ele fosse capaz de derrotar rapidamente Vladimir Putin. E, como sabemos, não foi isso que aconteceu.
O segundo fator, não menos importante, é que o eleitorado democrata não aprovou a omissão de Biden em relação ao massacre dos palestinos, o que afetou o mito dos democratas como protetores universais dos direitos humanos. As pesquisas mostram que foi um profundo erro basicamente vetar oradores pró-Palestina na campanha de Kamala, o que afastou eleitores mais ativos, principalmente da ala esquerda do partido.
No estado do Michigan, um campo de batalha vital nessa eleição, o eleitorado árabe rechaçou Kamala, sendo acompanhado por muitos eleitores democratas, o que gerou a vitória de Trump – e falamos de um estado governado por Gretchen Whitmer, uma democrata de posições avançadas e muito popular, cotada inclusive para substituir Biden, quando este teve a candidatura retirada, ou ser colega de chapa de Kamala.
Há casos exemplares, como a cidade de Dearborn, no Michigan, próxima a Detroit, onde Rashida Tlaib, deputada democrata progressista de origem palestina, teve 62% dos votos, muito mais do que os 36% de Kamala Harris, derrotada por Donald Trump em um grande, chocante e ilustrativo contraste. Os democratas eram maioria plena nos protestos contra o massacre palestino; como poderiam suportar o financiamento de Biden a Israel?
Como se isso não fosse suficiente, o abraço constante da campanha de Kamala com velhas personalidades neocons ligadas à administração de George W. Bush, marcado para sempre pela invasão do Afeganistão e do Iraque, certamente não ajudou com eleitores de origem árabe, fé muçulmana ou militantes progressistas – a indiferenciação de Kamala com Trump, em tempos em que a economia real capenga, foi fatal.
Aliás, também já demonstramos que os democratas continuaram a arrecadar mais do que Trump, mas ele sempre conseguiu fazer votos com muito menos dinheiro. O silêncio e apoio democrata às atrocidades de Benjamin Netanyahu serviram para engordar o seu financiamento de campanha, mas criaram uma hemorragia de eleitores – que a superioridade de arrecadação de cerca de 500 milhões a favor de Kamala não foi capaz de solucionar.
Trump e o Brasil
Os Estados Unidos realizaram, sob a administração do democrata Barack Obama, as maiores intervenções no Brasil desde o fim da Guerra Fria. Depois do episódio de espionagem contra a presidenta Dilma Rousseff, e a atuação – amplamente documentada – do Departamento de Justiça dos Estados Unidos na Operação Lava Jato, gerando o impeachment farsesco da mesma Dilma e a prisão de Lula, o poder de Washington sobre o Brasil aumentou.
Jair Messias Bolsonaro foi eleito presidente em 2018 em um cenário de cerco judicial à esquerda, com Lula – antes líder das pesquisas presidenciais – preso e incomunicável. O alinhamento de Bolsonaro com Donald Trump, eleito dois anos antes, era total, enquanto o governo Temer manteve relações distantes com o então mandatário da Casa Branca. Trump era uma novidade e não tinha relação com as forças políticas brasileiras.
As administrações do democrata Bill Clinton e do republicano George W. Bush tiveram uma profunda sinergia com, respectivamente, seus homólogos e contemporâneos Fernando Henrique Cardoso e Lula. O que insinuava se repetir, talvez de forma melhorada, entre Obama e Lula, não aconteceu – e piorou nos anos seguintes, com Obama mal escondendo sua antipatia por Lula e depois se lançando ferozmente para frear o avanço brasileiro.
A verdade é que, à moda da Europa, o establishment brasileiro da Nova República se relacionava com as alas do Partido Democrata, mas embora desconectado dos republicanos da era pré-trumpista, sempre houve canais de diálogo – Lula e Bush Filho, duas figuras diferentes na biografia e na ideologia, mas que colaboraram ativamente na América Latina e no mundo, ainda que com discordâncias e divergências importantes.
O jogo brasileiro muda com a débâcle pós-impeachment, com um recuo e submissão do país no plano internacional. Bolsonaro, é verdade, inova ao se alinhar não aos Estados Unidos, como a direita brasileira fez em muitos momentos, mas ao próprio Partido Republicano já sob Trump – isto é, em um momento de ruptura e polaridade na própria sociedade americana, o que o ex-presidente buscava repetir.
Eram as novas direitas, de lá e de cá, unidas, fazendo luta de classes a favor dos ricos e poderosos. A resposta dos Estados Unidos foi Biden, em uma união entre liberais e a crescente ala de esquerda do Partido Democrata, contra Trump em 2020, no contexto da trágica gestão da pandemia pelo republicano. Venceu Biden, ainda que por uma margem menor do que o projetado, enfraquecendo Bolsonaro no Brasil.
Com sinais tíbios de confrontação a Bolsonaro, a administração Biden foi muito mais empurrada pela sua base e pelos seus aliados brasileiros para repetir, a passos de formiga e sem vontade, o 2018 brasileiro, só que às avessas. Assim na terra como no céu, a polaridade se tornou simétrica, favorecendo a versão tupiniquim do arranjo de Biden, só que com a esquerda na cabeça e os liberais na base.
Lula venceu em 2022, com mais dificuldade do que o projetado, mas o resultado é menos um grande alinhamento astral e mais uma relação morna, com o governo brasileiro mandando sinais calorosos e o governo americano distante. Se Trump nunca reverenciou Bolsonaro, sempre tratando-o como um servo, não se pode negar que houve um alinhamento entre seus movimentos. Com Biden e Lula, talvez um certo drama inaudito.
Também pudera. Com Biden unindo a cruzada que Trump iniciou contra a China ao confronto direto contra a Rússia, não se poderia passar por cima que Lula era entusiasta do BRICS e nenhuma neutralidade passaria despercebida. Que não se diga que o governo brasileiro não tentou, na metade final de 2024, ao declarar apoio a Kamala, assumindo uma posição alinhada com Washington sobre a Venezuela e recuando na política para o BRICS.
Trump, contudo, venceu, e os dois anos de esforços brasileiros com os democratas foram jogados no lixo, com Bolsonaro festejando a volta de Trump – que ele vê como um caminho para a sua própria volta, o que demanda a retomada da sua elegibilidade perdida. A política brasileira então segue na sua era americanista, depois de um erro de cálculo que supôs Biden mais forte, aliado ou avançado do que ele realmente gostaria ou podia ter sido.
Trump, em seguida, emitiu sinais nada favoráveis ao Brasil. Ainda não houve diálogo, enquanto do outro lado o senador pela Flórida Marco Rubio, um extremista de direita da comunidade cubana da Flórida, foi nomeado secretário de Estado – marcando um desafio para chineses e para a esquerda latino-americana. Elon Musk, o dono do X, igualmente, ganhou seu ministério, ainda que bem simbólico.
Nada disso é animador para o governo brasileiro, sob intensa pressão do mercado financeiro para fazer ajustes de austeridade que podem afundar a popularidade de Lula, que está longe dos seus dois primeiros mandatos. Depois da controvérsia com a Venezuela, e um protagonismo de alas liberais do Itamaraty contrárias a uma maior integração com a China, o Brasil precisa se reorientar com a mudança radical de posições.
No longo prazo, a reeleição dos democratas simplesmente encaminharia a frente ampla brasileira em direção a um destino totalmente liberal, sem espaço para as esquerdas em definitivo – cujo espaço já é bem pequeno hoje em dia. Mas não seria um governo de confronto. Em um sentido aceleracionista, a gestão Trump representa uma ameaça de curto prazo maior, mas implica colateralmente em uma correção de rumos.
Hoje, a estratégia do BRICS, que até outro dia era uma opção – certamente melhor, mas uma opção –, se tornou uma necessidade, já que o Ocidente – aquele do qual o chanceler Mauro Vieira disse que fazemos parte – parece ruir. Não há outra coisa a fazer, mas antes do que nunca sigamos a rota tortuosa do caos atual. O episódio americano, é claro, mais do que ações da política externa, nos ensina lições valiosas sobre vitória e derrota na política interna.