Já nos anos 1960, o filósofo Herbert Marcuse fez uma conferência intitulada “A Sociedade Carnívora” na qual discorreu sobre a premente necessidade de uma nova esquerda naquela Europa estimulada por tantas mobilizações políticas e culturais.
O autor expôs em sua fala as enfermidades dos fenômenos sociais à época e como seus efeitos causavam a inconcebível paralisia e redundância das lutas políticas que indiretamente prestavam auxílio ao avanço das forças de exploração do capital. Essas eram, segundo ele, características da noção de sociedade carnívora.
Em suma, Marcuse especulava sobre o tema da renovação do pensamento revolucionário como elemento propulsor de combate a um sistema canibal que, ao devorar a própria matéria humana, reinventa-se, criando novas condições a sua permanência.
Nos anos 2000, o filósofo Achille Mbembe publica o ensaio “Necropolítica – Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte” no qual reflete sobre o perverso equilíbrio entre vidas que devem existir e vidas que são descartáveis, com vistas à manutenção do poder e ao controle sobre os fenômenos produzidos pela atividade humana no mundo.
Mbembe aprofunda algumas teorias do século XX, sublinhando a questão da racialidade como aspecto estrutural da máquina do capitalismo globalizado, alicerçado historicamente na desumanização e mercantilização de corpos negros e indígenas.
Se Marcuse indica o mecanismo carnívoro afeito à carne humana do capitalismo, Mbembe amplia horizontes analíticos sobre a temática do poder, corrigindo o apagamento sistêmico de humanidades negras nesse processo, de maneira a apontar um fenômeno no mínimo aterrorizante: a modulação de vidas negras e pobres, mesmo depois da morte, para fins de estabilização de vidas brancas endinheiradas.
O assassinato da jovem Kathlen Romeu, na última terça-feira (08/06), reafirma em circunstâncias evidentes qual a política de segurança pública que o estado do Rio de Janeiro utiliza: a eliminação da pobreza sob o pretexto falseado e, cada vez mais abstrato, de guerra contra os cartéis de tráfico de drogas.
Kathlen era designer de interiores e trabalhava como vendedora da loja Farm Rio, foi atingida por um tiro de fuzil no tórax durante uma ação da Polícia Militar na comunidade Lins de Vasconcelos, na Zona Norte da capital carioca. Foram duas vidas exterminadas, junto de tantas outras milhares de existências negras que são extirpadas cotidianamente do corpo social: Kathlen estava grávida de 14 semanas e havia se mudado da região no fim de abril para fugir da violência.
A comoção pelo assassinato da jovem levou a muitas manifestações na internet, uma delas chamou a atenção pelo timbre macabro que prenuncia o enraizamento do mercado na operação das políticas da morte: a loja Farm Rio soltou uma nota em sua conta de Instagram dizendo que manteria o código de vendedora da Kathlen. O objetivo desse estranho gesto seria reverter o valor das comissões para a família.
Não é preciso muito esforço para achar relatos de vendedores de lojas como a Farm Rio dizendo sobre as condições precárias de trabalho e sobre como a venda comissionada é um dispositivo usado pelas empresas para superexplorar, através da política de metas e de compensação pelo maior esforço, seus empregados. A comissão é uma parte ínfima do lucro sobre o produto vendido, isso significa que a campanha de reversão das vendas sob o código de Kathlen diz respeito a algo que a Farm Rio não informa em sua postagem: a doação direcionada à família não é o valor total das vendas, mas parte do valor total.
A campanha é um belo exemplo de como o capitalismo atrelado ao racismo se movimenta em face das reivindicações políticas sobre a agenda de raça e gênero; as apropriações são feitas de maneira capciosa e compõem uma atualização do quadro de fetiches que formam a cultura brasileira. A Farm Rio é uma marca famosa por flertar com o imaginário dos movimentos identitários, consolidando-se como detentora de uma pretensa estética da diversidade. Nos últimos anos, a marca se tornou a queridinha de uma clientela abastada cujas boas intenções se deflagram em hashtags e mobilizações virtuais.
A realidade, no entanto, se impõe como esfera concernente ao capitalismo que tudo abraça ao mesmo tempo em que apunhala: qualquer boa intenção envolvendo a geração de lucros em homenagem a uma pessoa morta ou a partir dela revela uma tradicional engrenagem do mercado: o que está em jogo não é a vida em si, tampouco seu significado enquanto fenômeno, o que está em jogo é a forma-mercadoria da vida.
As pessoas que comprarem produtos sob o código de Kathlen podem acreditar que assim exercem sua solidariedade e cidadania, mas não estarão fazendo nada além de performar o papel de consumidor. As vitrines de lojas demonstram em sua quase transparência a fusão entre o olhar desejoso do comprador e a rigidez mórbida dos manequins que oferecem o objeto de desejo: uma camisa, um vestido, uma saia, um par de sapatos, tudo cabe no corpo de plástico, o corpo de plástico a tudo se adéqua sem sentir, sem sofrer, sem chorar – é ele nas vitrines de loja a servir de inspiração ao corpo de carne e osso.
A Farm Rio faz com que Kathlen trabalhe mesmo depois de morta, o que preconiza talvez um estado social necrofílico, a conjugação entre as noções de Marcuse e de Mbembe, ou seja, uma sociedade que devora seus vivos desimportantes (negros, mulheres, crianças, pobres) bem como seus mortos programados, extraindo deles, de suas memórias, de seus vestígios e de suas imagens, a produtividade necessária para que as fornalhas continuem funcionando a pleno vapor.