Papa Leão XIV e Trump, dois Estados Unidos
Chegada de Robert Prevost ao comando da Igreja como papa Leão XIV terá implicações à política dos EUA, já que católicos se tornaram setor importante no país
Seis dias antes da escolha do novo papa, Donald Trump, enquanto se encontrava às turras na guerra comercial contra a China, arranjou tempo para publicar uma arte, de gosto duvidoso, dele mesmo em trajes papais. Poucos dias antes disso, Steve Bannon, seu ex-estrategista, dizia ao jornalista Piers Morgan que o cardeal Prevost era um “azarão” com reais chances de ser escolhido como papa. O trumpismo estava mesmo de olho no Conclave.
Além do conhecido poder da Igreja Católica, há um elemento interno muito importante quando falamos de catolicismo e Estados Unidos: é entre a comunidade católica, maior religião em termos particulares, que as últimas eleições têm sido decididas. Os católicos são um grupo grande, dividido, mas ainda flexível para mudar seu voto em um cenário político cada vez mais polarizado nos Estados Unidos.

(Foto: Mazur/cbcew.org.uk / Flickr)
Em 2016, Trump venceu entre os católicos, mas em 2020 perdeu entre eles, voltando a vencer nesse grupo em 2024. Isso coincide com sua vitória, derrota na reeleição e retorno ao poder. Muitos dos estados-pêndulo, na verdade são, não por acaso, estados com uma grande quantidade de católicos – e embora se olhe muito para os evangélicos e o lado mais radicalizado do sionismo, parte da alt right dos Estados Unidos passa pela Igreja Católica.
O cardeal Raymond Leo Burke é um dos religiosos de alto escalão mais presentes na defesa do trumpismo. O então cardeal Prevost, ao contrário, se levantou e fez críticas expressas ao atual governo americano, principalmente sobr sua política de deportações de imigrantes – além de ter enfrentado o vice-presidente recém-eleito, JD Vance, um católico convertido, quando este disse que Jesus nos pediu para hierarquizar nosso amor pelo próximo.
Não poderia ser diferente: Prevost tem uma longa história missionária no Peru, onde foi bispo da diocese de Chiclayo, razão pela qual ele obteve cidadania peruana há poucos anos – além de ter ascendência haitiana e hispânica por parte de mãe. Ex-líder da ordem dos agostinianos, Prevost tem uma atuação que atravessa fronteiras e, longe de ser um grande progressista, está mais distante ainda de ser um tradicionalista católico.
Os Estados Unidos nunca foram utopia para os católicos
Parte do imaginário americano parte da ideia de uma utopia religiosa, mas ligada à reforma protestante na Europa. E isso certamente inspirou a política de ocupação de seu território inicial e sua expansão posterior a oeste. A democracia de pequenos proprietários, é claro, foi construída com mão de obra africana escravizada, além de ter simplesmente tomado a terra de inúmeras comunidades indígenas – mas ela não tinha lugar para os católicos.
O número de católicos no país nos seus anos iniciais não chegava a 2% da população total. Décadas mais tarde, em meados do século XIX, a população católica se expande, e não por acaso era formada por uma nova leva de imigrantes pobres, destinados a servir como o grande exército proletário do nascente capitalismo americano. Eram irlandeses, italianos e eventualmente poloneses e alemães do Sul.
Como Marx observa no final do Livro I d’ O Capital, a construção do capitalismo americano passou pelo fim das leis que antes garantiam o acesso à terra aos que chegavam da Europa: “a grande República deixou, assim, de ser a terra prometida dos trabalhadores emigrantes [da Europa]”. Uma vez sem possuir a terra e confinados nas grandes cidades da costa leste, o imigrante europeu já não tinha escolha senão vender sua força de trabalho.
Esse imigrante que já não tinha mais à disposição “a propriedade privada fundada no trabalho próprio” se tornando, desse modo, um proletário. O que Marx não se atentou é que grande parte desse novo imigrante americano era católico, se tornando brancos de segunda classe – enquanto os negros recém-libertos estavam em uma condição ainda inferior, convivendo com a segregação racial que duraria cem anos depois do fim da escravidão.
O branco americano de segunda classe, não por coincidência quase sempre católico, era a imagem padrão do operário industrial, que apesar do seu progresso material, ainda permanecia numa condição marginal até os anos 1960 – e a grande coalizão daquela época foi liderada não à toa por John Kennedy, o primeiro católico a chegar à presidência dos Estados Unidos, que caminhou junto das reivindicações de negros e judeus.
A segunda onda católica nos Estados Unidos: os hispânicos e não-brancos
Com a chegada em massa de imigrantes da América hispânica, um novo panorama foi aberto para o catolicismo nos Estados Unidos. Miscigenados e racializados abaixo dos “brancos de segunda classe” – de todo modo, americanos já há várias gerações –, os hispânicos se tornaram um fator central da nova classe trabalhadora americana do quarto final do século XX em diante. E, novamente, enquanto um elemento católico.
Enquanto irlandeses e italianos se mantiveram católicos durante gerações, iniciando um mimetismo social na grande República protestante só depois de muito tempo, os hispânicos apresentaram um novo padrão: católicos de início, a passagem para se aclimatar aos Estados Unidos, ou mesmo conquistar cidadania, passou muitas vezes pela conversão ao protestantismo. Esse cenário levou a uma instável renovação do catolicismo americano.
Enquanto paróquias de regiões imigrantes hispânicas tomavam, pela força dos fatos, uma dinâmica bastante distinta das paróquias de subúrbios da decadente aristocracia operária irlandesa e italiana. A Igreja nos Estados Unidos se dividiu, portanto, em dois grandes grupos bem diferentes de fiéis – com uma ambiciosa ala tradicionalista crescendo entre os católicos americanos mais antigos.
O cardeal Prevost é uma mistura desses dois grupos, já que é de descendência italiana e francesa por parte de pai, enquanto sua mãe era descendente de haitianos negros e hispânicos. Ele ainda encontrou a América Latina na sua trajetória missionária, o que de certa forma foi um reencontro com parte de suas raízes, produzindo um vínculo profundo com o Peru, onde foi crítico do fujimorismo.
O Pew Research Center captou bem isso em um recente estudo do catolicismo nos Estados Unidos, 10 facts about U.S. Catholics, a comunidade católica americana está dividida, o que é fruto não somente da dinâmica social americana dentro da Igreja, mas também do inverso, com boas polêmicas em relação a questões como aborto, cuja legalidade é defendida por seis em cada dez católicos dos Estados Unidos.
O papado permanece nas Américas
Longe do carisma e do ímpeto popular de Francisco – a quem fez questão, contudo, de recordar e mencionar em seu primeiro pronunciamento –, Leão XIV adotou seu nome papal em razão de Leão XIII, pontífice que editou a encíclica Rerum Novarum, a qual inaugurou a doutrina social da Igreja, mas também foi uma resposta ao ascendente movimento socialista, que levantava a bandeira da luta pelo paraíso na terra.
Agostiniano e oriundo da gélida, ainda que progressista, Chicago, Leão XIV dificilmente reproduziria o ethos de um jesuíta argentino – e as duas ordens, dos agostinianos e a dos jesuítas, não poderiam ser mais diferentes na forma de abordar o catolicismo. Ainda assim, foi Francisco a criar o Robert Prevost como cardeal – e a nomeá-lo para chefiar o Dicastério para os Bispos, responsável por administrar as dioceses do mundo.
A moderação de Leão XIV, apesar de parecer uma atenuante, se torna um problema agravado para Trump, na medida em que o novo papa é americano e fala, portanto, para as plateias internas dos Estados Unidos. Se a ala direita da Igreja nos Estados Unidos, com suas constantes sugestões de cisma, contribuiu para puxar o papado ao centro, paradoxalmente, ela arranjou um grande problema para si com um “o papa americano” que não é dela.
Um papa mais progressista e de fora dos Estados Unidos manteria, certamente, a ala direita da Igreja na sua posição cômoda de excepcionalismo tradicionalista. E ajudaria Trump na sua narrativa ambivalente que sorri ao anticatolicismo de sempre dos Estados Unidos, mas, ao mesmo tempo, pisca para o tradicionalismo católico, que não quer se misturar com nada que lembre o Concílio do Vaticano II.
O pior ainda é que a biografia e a atuação do cardeal Prevost junto à migração, e como ele pode falar sobre isso, pode ser muito duro para uma das principais bandeiras de Trump: a deportação em massa de imigrantes hispânicos. Em suma, possivelmente os católicos progressistas vão sentir falta de Francisco, mas o quadro atual não é nada confortável para Trump – ou para o católico JD Vance, seu vice e pretenso herdeiro político.
(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.
