Para além da Margem Equatorial: 5 desafios mais relevantes para o setor energético
O debate sobre a busca por petróleo na Margem Equatorial tem sido um debate de surdos: ou desenvolvimentismo simplista, ou desprezo à soberania energética
A esquerda brasileira não tem hoje um projeto nacional para o setor energético. Sem um debate sobre nosso projeto nacional para o setor, a capacidade do nosso campo de intervir no combate à emergência climática será reduzida.
Um projeto nacional para o setor energético envolve reconhecer um balanço de riscos e possibilidades para a redução das emissões de gases de efeito estufa e redução do impacto ambiental das atividades econômicas. Hoje, o debate do nosso campo é dominado por perspectivas que não reconhecem a necessidade desse balanço: se apegam à defesa de um direcionamento “contra” ou a “a favor” de temas do momento, via de regra sem referência à realidade brasileira.

(Foto: Divulgação Petrobras / ABr / Wikimedia Commons)
Nesse contexto, o debate interno do nosso campo sobre a liberação da busca (exploração) por petróleo na bacia sedimentar da Foz do Amazonas, no Amapá, tem se tornado um debate de surdos. De um lado, a defesa da exploração é feita com base em um desenvolvimentismo simplista, que assume que a mera presença de um setor petrolífero será capaz de desenvolver a região. Em geral, é uma posição que reduz o peso da emergência climática e assume que as rendas petrolíferas vão “financiar a transição” sem dizer como isso ocorrerá.
Do outro lado, a resistência à exploração é feita de forma completamente alheia ao desafio do setor energético brasileiro, sem uma discussão séria sobre a realidade brasileira, onde as emissões de gases de efeito estufa não vem primariamente dos combustíveis fósseis. A resistência também não é feita acompanhada de um debate sobre a soberania energética, elemento crítico para o próprio enfrentamento da emergência climática.
Como eu já escrevi nesta coluna, a Margem Equatorial não é o principal desafio na atuação do Brasil diante da crise climática. Também não é a solução dos nossos desafios econômicos. Por isso, listo abaixo cinco tópicos que, a meu ver, são mais importantes para a formulação de um projeto nacional para o setor energético pelo campo popular. A apresentação será brevíssima, mas prometo aos leitores e leitoras expandir a discussão sobre cada tópico em colunas futuras.
Ampliação do espaço orçamentário para investimento público
A PLDO de 2026 deixou evidente a disputa que ocorrerá sobre o novo arcabouço fiscal no próximo mandato presidencial: o crescimento das despesas obrigatórias vai comprimir as despesas discricionárias, como eu já antecipei aqui nesta coluna. Isto reduzirá a zero o espaço para o investimento público, principalmente em infraestrutura. O enfrentamento à emergência climática requererá grandes investimentos em infra-estrutura: mudanças nos modais de transporte, no transporte público, na geração e transmissão de
energia. Sem espaço orçamentário, um projeto nacional não serve de nada. Por isso, temos que brigar para retirar o investimento público das regras fiscais.
Reforma da governança das estatais
Além do orçamento, o investimento público pode vir das estatais, principalmente da Petrobras. No entanto, o golpe de 2016 desencadeou uma mudança na governança das estatais de economia mista que limita a capacidade de investir das estatais, sob o pretexto de limitar a corrupção. A lei das estatais e seus desdobramentos curto-prazistas dificultam investimento principalmente em novas atividades econômicas com retorno incerto, como são as novas energias e combustíveis.
Com as regras de hoje, a Petrobras não poderia descobrir o pré-sal: uma aposta tecnológica de alto risco e retorno de longo-prazo, que só pode ser feita pelo Estado (ou com garantias do Estado), não por entidades privadas. Mudar a governança das estatais é essencial para que o Estado brasileiro possa voltar a ter o papel de definir o horizonte da transição energética brasileira.
Controle popular do programa de biocombustíveis
Os biocombustíveis são uma das apostas principais do Brasil para o enfrentamento à emergência climática. O Brasil já tem um programa de biocombustíveis sólido que surgiu justamente da necessidade de substituir o petróleo importado na década de 1970. Graças a essa base, as emissões de transporte do Brasil são menores que a de países similares. Os biocombustíveis de segunda e terceira geração (etanol de segunda geração, biometano, diesel verde e querosene de aviação sustentável) prometem reduzir ainda mais nossas emissões.
No entanto, biocombustíveis dependem da produção agrícola, que é justamente a maior fonte de emissão de gases de efeito estufa e de destruição do meio-ambiente. Sem controle popular e aumento da participação da agricultura familiar, a solução dos biocombustíveis pode se tornar um risco, inclusive para a soberania alimentar. Além disso, há constante pressão pela suspensão da mistura de biocombustíveis nos combustíveis fósseis por parte do setor de distribuição e abastecimento de combustível.
Transporte público (eletrificado ou renovável), ferrovias, trens de passageiro
O fortalecimento do programa de biocombustíveis tem que ser aliado a investimento em transporte público para as cidades e modais de transporte de longa distância mais eficientes. Só assim reduziremos a demanda por combustíveis fósseis e pela exploração de novas fronteiras petrolíferas.
Além dos benefícios sociais e econômicos, o transporte público reduz a frota de carros e a poluição. Um sistema de transporte público, que também pode ser eletrificado e baseado em biocombustíveis, vale muito mais do que uma frota de carros elétricos privados. A produção de carros para transporte individual ainda implica em altos custos climáticos e ambientais, seja pela fabricação em países com matriz elétrica fóssil ou pela exploração dos minerais raros para as baterias.
Nos transportes de longa-distância, substituir caminhões, ônibus e aviões por trens de carga e de passageiros também terá retornos sociais, econômicos e ambientais. Aqui é importante lembrar que estes projetos são inevitavelmente de grande porte e causam problemas próprios. Conciliar estes projetos muito necessários com o respeito a populações locais e ao meio-ambiente não é questão simples.
Defesa da Eletronuclear e revisão da estrutura do setor elétrico brasileiro
A eletrificação das atividades econômicas é uma das principais vias de redução do uso de combustíveis fósseis. Como o Brasil tem a matriz elétrica mais limpa entre todas as grandes economias do mundo, eletrificar é especialmente atrativo. No entanto, a privatização da Eletrobras retirou do Estado brasileiro a principal ferramenta de defesa da soberania do nosso sistema elétrico.
O recente acordo do governo com a Eletrobras privatizada foi um balde de água fria para quem busca um projeto nacional soberano para o setor. O campo popular não deve abrir mão da luta dos eletricitários, inclusive a luta pela manutenção (e ampliação!) dos investimentos da Eletronuclear. A energia nuclear é uma aposta complementar à expansão das energias não-fósseis intermitentes (eólica e solar), que já estão colocando grandes desafios para a estabilidade do sistema elétrico.
(*) Pedro Faria é economista pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutor em História pela Universidade de Cambridge
