“A coragem hoje não consiste mais em atacar governos, mas em defendê-los”[1]
Há um livro primoroso de Domenico Losurdo chamado “A linguagem do império – léxico da ideologia estadunidense”[2]. Nele, o filósofo italiano disseca os termos preferidos dos diplomatas, acadêmicos e jornalistas nos artigos, livros e notícias sobre os temas que interessam à Política Externa dos EUA: terrorismo, fundamentalismo, antiamericanismo, antissemitismo, antissionismo, filo islamismo e o “ódio contra o ocidente”, mostrando que o rigor teórico está longe de ser o principal critério na adoção, pelos experts, das categorias. Estas são mobilizadas, na realidade, “para rotular o inimigo e seus cúmplices e, portanto, empunhadas e brandidas como armas de guerra”.
Não era o tema deste livro de Losurdo, mas de minha leitura de muitas de suas obras depreendo que ele estaria de acordo, se ainda estivesse entre nós, com a organização de mais um léxico onde analisaríamos os termos democracia, respeito às instituições, eleições limpas, autocracia e ditadura. Na verdade o próprio Losurdo já fizera algo semelhante, ao dedicar-se a elucidar o sentido verdadeiro do liberalismo em mais de uma obra[3], bem como o sentido da oposição entre a democracia ocidental e a ditadura (da URSS e da China)[4].
No novo léxico, poderíamos começar nos perguntando sobre “respeito às instituições” e nele poderíamos estudar por que o desrespeito de Emmanuel Macron à maioria de esquerda, nomeando um primeiro-ministro não indicado pelo bloco majoritário – Michel Barnier – é tratado pela mídia monopolista como um movimento “permitido pela constituição”, como pode-se ler, por exemplo, no portal das organizações Globo.
Sobre “eleições limpas” teríamos muitos casos a analisar em nosso léxico. Fiquemos com os mais recentes: em 2020, quando Biden foi proclamado vencedor das eleições nos EUA, Donald Trump, que buscava a reeleição, não reconheceu o resultado e acusou os Democratas de fraude (igual à direita da Venezuela e igual ao Bolsonaro, no Brasil). No entanto, as manchetes dos grandes canais tratavam do seguinte modo: Trump acusa fraude, sem provas, como é o caso das manchetes da BBC, do El País, do Uol e tantos outros.
Quando se trata da Venezuela, no entanto, a falta de provas da oposição é mero detalhe. A despeito dos relatos dos observadores internacionais, como a insuspeita Associação de Juristas pela Democracia, os grandes veículos das Américas e da Europa agiram em uníssono, condenando, antes mesmo da verificação pelo tribunal eleitoral, a falta de lisura do processo. Depois dos trabalhos do tribunal eleitoral e da confirmação do resultado, nenhum dos acusadores mudou de posição, incluindo o governo do Brasil. E acusam com base em quais elementos? Na palavra dos derrotados. Ora, se a palavra dos derrotados sempre valesse, as eleições em todos os países do mundo tornar-se-iam inviáveis. A não ser, é claro, que o adversário fosse sempre o PT, sempre pronto a reconhecer a derrota.
Aí é que entra o outro termo que precisaremos dissecar no nosso léxico: autocracia. Segundo o léxico dos jornalões, do mainstream universitário (chancelado pelos rankings e critérios criados nos EUA e copiados em todo o mundo, com destaque para o Brasil) e agora também de acordo com a chancelaria brasileira, são autocracias todos aqueles governos em que, mesmo havendo eleições, vence sempre o mesmo partido. Até que isso faz algum sentido, no entanto, por que é que os EUA, onde se revezam apenas dois partidos e onde os organizadores de movimentos contestatórios amargam penas de mais de 50 anos e, ainda, são sempre integrantes das mesmas classes sociais os eleitos, não é uma autocracia? Com todos esses complicadores, essa categoria vai dar um trabalho enorme para ser destrinchada. Junto a ela, é claro, está o seu oposto: democracia: democracia plena; democracia participativa; democracia plebiscitária; democracia popular. Por onde começar? Fato é que o palavreado dos mass media e dos experts já tem a sua definição formada: democracias são os sistemas de governo em que os eleitos não ameaçam a hegemonia dos EUA. Do mesmo modo, o regime bipartidário de ricos dos EUA é um “exemplo de democracia” e quem não concorda com isso não sabe nada de ciência política.
Vamos ao exemplo mais recente de todos: as eleições na Geórgia do dia 26/10. Como nos informa a revista Carta Capital, “o partido do governo na Geórgia, Sonho Georgiano, venceu as eleições” e logo em seguida o partido derrotado acusou fraude. Imediatamente, segundo a mesma reportagem, observadores do Parlamento Europeu alertaram para irregularidades e um “recuo da democracia” no país. Os EUA já se pronunciaram, “preocupados” com a democracia no país que – vejam só que coincidência! – faz fronteira com a Rússia. Analistas dos grandes jornais e alguns experts já se apressaram em denominar o partido vencedor como vinculado a uma autocracia, com laços com o governo de Putin. Logo, um punhado de autocratas. E, enquanto “autocratas vinculados à Rússia”, não podem ter o direito de ingressar na União Europeia.
E já que a oposição na Geórgia está em pé de guerra, fica o questionamento para o Itamaraty, que agora também acumula a função de agência verificadora de eleições “limpas”: o Brasil já está pronto para condicionar seu reconhecimento do novo governo georgiano à entrega das atas?