Quarta-feira, 26 de março de 2025
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Na terça-feira (11/02/25), a Autoridade Nacional de Proteção de Dados do Brasil determinou a suspensão do pagamento pelo escaneamento e registro da íris de cidadãos no país, que começou a ser encampado pelo projeto World ID da empresa Tools for Humanity desde novembro de 2024. Tal coleta e registro entra na seara dos dados pessoais biométricos – “como a palma da mão, as digitais dos dedos, a retina ou a íris dos olhos, o formato da face, a voz e a maneira de andar” –, e integram parte sensível (lê-se valiosa) do processo de digitalização contemporâneo, instigando o apetite por dados (e valorização) das famosas Big Techs

O projeto apresenta-se preocupado com a produção de uma identidade digital global baseada no escaneamento da íris de cada indivíduo, gerando uma criptografia para a identificação que seria única, com o pressuposto apagamento dos dados utilizados para gerá-la. Procedimento esse que, em tese, seria mais seguro, na medida em que também seria irreproduzível por inteligências artificiais. O pagamento pelos dados biométricos da íris se dão através de worldcoins, criptomoeda da própria empresa (algo que gira em torno de 400 e 500 reais, dependendo da cotação diária do ativo). Estima-se que aproximadamente meio milhão de pessoas, somente nos 53 pontos de coleta em São Paulo, já tenham vendido o escaneamento da própria íris para o projeto.

Em nota, a empresa afirmou que “segue seu compromisso em cumprir com as leis nos mercados onde opera e continuará trabalhando para garantir transparência e entendimento público desse serviço essencial, que busca aumentar a segurança e confiança online na era da IA” – é sobre esse pressuposto que justifica-se a produção privada de uma “verificação de humanidade” para a era digital. 

O que precisamos nos atentar é como, no processo de digitalização, a tecnologia abre ou mesmo produz dimensões completamente inéditas a serem exploradas pela lógica do Capital
(Foto: Eric Wiessner / Wikimedia Commons)

Esse projeto foi anunciado pela empresa desde o lançamento de seu criptoativo, a Worldcoin, em julho de 2023, projeto encampado por Alex Blania e Sam Altman, CEO da OpenAI, que tornou-se notória pelo ChatGPT. Ambos já comentaram que o projeto visa “criar uma nova identidade e uma rede financeira controlada por todos”, com o objetivo de “preservar a privacidade, destravar um processo democrático global e, eventualmente, mostrar o caminho para uma renda básica universal financiada por inteligência artificial“.

Sendo assim, não só a criptomoeda da empresa está diretamente ligada ao escaneamento de retina e à produção desse “documento de identidade” global, como também a fantasia ideológica vendida pela retórica do empreendimento é de uma utopia digital. A combinação de dados pessoais biométricos organizados como identificadores digitais de humanidade e alinhados a uma criptomoeda como projeto em escala global é o cerne do empreendimento que, entretanto, já demonstra seu avesso distópico: apesar de pessoas que venderam seus dados para a empresa relatarem, em fevereiro, que havia um vídeo informativo antes do escaneamento, outras também contaram que antes passaram pelo procedimento sem “qualquer explicação sobre o que era o projeto, nem mesmo pelo aplicativo”; sendo sua motivação, obviamente, o retorno em dinheiro oferecido, já que o valor relativo à cotação dos criptoativos pode ser resgatado no dia seguinte. Os relatos fornecidos por uma matéria da CNN são mais do que preocupantes. 

Uma realidade onde mega-corporações estadunidenses conseguem simplesmente lançar um aplicativo de cadastro e organizar uma operação de escaneamento de íris remunerada para mais de 500 mil brasileiros, até ser enfim “interrompida”, deveria chamar atenção de qualquer um minimamente preocupado com o estado atual do mundo – operação essa que também já foi barrada, por exemplo, em Hong Kong e Portugal.

Esse episódio deixa claro mais uma vez que tais corporações estão mais do que dispostas a jogar com a fragilidade social proveniente da crise do trabalho e do esgarçamento das formas de seguridade, previdência, regulamentação, etc – fragilidade que convencionou-se chamar de neoliberalismo. O discurso ultraliberal anti-estado e pró-mercado, além de cínico, se presta a defender um projeto de sociedade onde iniciativas como a World ID são tidas como materialização do horizonte de futuro desejável: uma organização social em escala global, gerida por uma empresa privada multibilionária. Isso demonstra como a escala de poder político-econômico concentrado, no processo de digitalização do século XXI, ganha repercussões inéditas. 

É frustrante também encontrarmos o limite comedido que sugerem os supostos críticos (liberais) da iniciativa: alguns se contentam em questionar as boas intenções de uma corporação estadunidense multibilionária, outros sugerem que é necessário “qualificar” o consentimento para legitimar, assim, essa relação de troca. É preciso ser suficientemente esclarecido sobre o procedimento para, aí sim, autorizar o escaneamento da própria íris a uma empresa privada estrangeira, em troca de alguns criptoativos extremamente significantes na vida de uma brasileira ou um brasilerio médio (leia-sê, pobre): que diferença pode fazer mais 400 ou 500 reais no mês?

Obviamente encontramos aqui um novo desdobramento da velha antinomia entre liberdade formal – ou formalização da liberdade – e liberdade efetiva na sociedade do capital, como já explicitado por Marx: como é possível formalizar uma relação (de troca) entre sujeitos “livres”, ao mesmo tempo em que essa relação é mediada por abstrações que impossibilitam o acesso à assimetria de liberdade inerente entre tais sujeitos? O predicamento digital coloca ainda outras questões: é possível considerar a espoliação de dados digitais tão especificamente sensíveis, como é no caso do escaneamento de íris, apenas pela perspectiva do trabalho? Marx, inclusive, teria mais a dizer sobre isso.

O que precisamos nos atentar é como, no processo de digitalização, a tecnologia abre ou mesmo produz dimensões completamente inéditas a serem exploradas pela lógica do Capital. Além disso, precisamos entender que as condições de possibilidade dessa produção e exploração do paradigma digital estão, em alguma medida, abertas: é no presente que se forja o possível, é também no agora que o aceitável do futuro está sendo formado, o “normal” é eixo central da disputa política – especialmente aquilo que se aceita enquanto realidade, aquilo que é normalizado tornando-se norma. 

Esse primeiro quarto de século foi marcado pela emergência de um novo paradigma tecnológico que é cada vez mais “socialmente conectado” (e também disperso), ao mesmo tempo em que o social é fundamentalmente desintegrado: a digitalização corresponde à crise da sociedade do trabalho e à crise de reprodução social. Existem muito mais coisas entre o “fim da sociedade salarial” e a “uberização” do que pode imaginar nossa vã filosofia: a apropriação digital de uma característica biométrica única parece estar entre essas coisas. 

A metrificação da vida, enquanto modo de medição das características biológicas, revela-se em um termo utilizado cada vez mais para a identificação e autenticação em regime digital: biometria. O giro tautológico da abdicação de lastros, que se expressa desde as criptomoedas até a “pós-verdade” como crise informacional, encontra valor na metrificação de (bio) estruturas identificatórias. O empreendimento da Tools for Humanity, que livremente podemos traduzir como “ferramentas para a humanidade”, revela-se a subordinação da humanidade pela ferramenta. E mais, subordinação essa que paga (ou extorque) em criptomoedas, mas nos custa os olhos da cara. Nos resta, ao menos por enquanto, descobrir as perguntas que precisam ser feitas para a esfinge digital, e essas perguntas não se resumem a um prompt.

(*) Cian Barbosa é bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, tecnologia, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador no Centro de Formação, onde oferece cursos — sendo o mais recente uma Introdução a Lacan pelo estruturalismo e a teoria social.