Pepe Mujica, monumento latino-americano
Muitos falam em dois Mujicas, o guerrilheiro e o presidente; mas se são dois Mujicas, também são duas Américas Latinas, dois Uruguais, duas épocas distintas
Neste 13 de maio nos deixou Mujica, o “Pepe”. O ex-presidente do Uruguai chegou ao cargo em 2010 como candidato da Frente Ampla, fundada em 05 de fevereiro de 1971. Nas pequenas biografias e análises que o homenageiam pela ocasião de sua morte reincide a opinião de que tratam-se de “dois Pepes”: o tupamaro, revolucionário, violento, heroico e preso político dos anos 1960-1980; o senador, ministro e presidente frente-amplista da segunda década do século XXI: simpático, leve, filosófico e reformista. Mas se são “dois Mujicas”, também são (pelo menos) duas Américas Latinas, dois Uruguais, duas épocas muito distintas. A trajetória de Pepe é a própria trajetória democrática latino-americana. Sua história de vida é nossa própria história e é por isso que Mujica, que agora nos deixa e torna-se história, é um monumento latino-americano.
Os tupamaros
Para se compreender quem foram e o que queriam os militantes do Movimento de Libertação Nacional (MLN), ou MLN-T (de Tupamaros), é preciso acompanhar as mudanças que se passavam no Uruguai na segunda metade do século XX. A chamada “Suíça latino-americana” tinha uma população pequena, menor do que a maioria das capitais brasileiras e majoritariamente formada por descendentes de imigrantes europeus, cuja marca cultural foi definidora da organização socioespacial do país. Os indígenas haviam sido quase que totalmente aniquilados ainda no século XIX e seus remanescentes integrados à cultura gaucha dos tropeiros e criadores de gado depois de terem protagonizado os levantes de libertação nacional liderados por Artigas.

(Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados)
Com uma economia fundada no campo, onde a criação extensiva de gado era a principal fonte de renda, para além de outras atividades agrícolas, o Uruguai viu sua renda declinar na segunda metade do século XX. O país não passou por uma reforma agrária nem por um processo de modernização amplo o suficiente para ser capaz de fazer frente às mudanças mundiais. Houve uma industrialização por substituição de importações, voltada principalmente ao mercado interno, mas nenhuma mudança na estrutura fundiária ou mesmo um processo de modernização produtiva no campo. Com a queda na renda das exportações e o início de uma espiral inflacionária, os níveis de renda – até então bastante altos para o contexto latino-americano – começaram a declinar, com maiores impactos, como sempre, para a classe trabalhadora.
Iniciou-se um período de lutas da classe trabalhadora, recebido com forte repressão por parte do governo. As classes dirigentes passaram a responsabilizar os movimentos de trabalhadores pela inflação e iniciou-se uma escalada repressiva contra as organizações populares. Nesse momento, no início dos anos 1960, começou a ganhar vulto a mobilização dos trabalhadores da cana de açúcar, uma atividade econômica importante no norte do Uruguai. As marchas dos cañeros espalharam-se pelas cidades, exigindo legislação protetiva e salários, uma luta que, furiosamente reprimida, ganhou novos contornos. O movimento passou a reivindicar uma reforma agrária e realizou a ocupação de um latifúndio no departamento de Artigas. Suas marchas começaram a ganhar apoio nos centros urbanos e a ter a simpatia dos partidos e organizações de esquerda. Ao mesmo tempo, crescia a repressão aos movimentos, com o surgimento – incentivado e financiado pelas classes dirigentes – de bandos armados, verdadeiros esquadrões fascistas, que atacavam as organizações de trabalhadores buscando amedrontá-los e desarticulá-los. Esses grupos chegaram a atacar a Universidad de la República, na capital. A situação deteriorava-se, ainda sob um governo formalmente “democrático”, mas que ganhava contornos ditatoriais e intensificava o aparato repressivo.
Alguns enfrentamentos em Montevidéu entre marchas de cañeros, apoiados por sindicatos urbanos, e bandos fascistas, levaram à intensificação da repressão policial. Os trabalhadores começaram a também armar-se e num desses enfrentamentos um disparo matou um homem ligado aos bandos fascistas. As autoridades apressaram-se em culpar Raúl Sendic, um assessor do sindicato dos trabalhadores da cana de açúcar (UTAA). Raúl foi para a clandestinidade e nesse momento a coordenação dos movimentos (organização formada para apoiar as lutas em curso) passou a promover debates políticos sobre a estratégia da esquerda para fazer frente à repressão e para conquistar o poder político. Temas como a revolução cubana, a resistência argelina e outros processos em curso principalmente na América Latina vieram à tona, junto com a insatisfação com o modelo político “democrático” que resultava sempre em um revezamento entre os partidos da ordem, com forte presença dos militares. A tese da necessidade de se buscar outro tipo de organização política, capaz de combinar o trabalho legal (eleitoral e sindical) com uma face militarizada, de caráter estratégico e também defensivo, começou a ganhar adeptos.
Um grupo organizou então um congresso que aprovou uma tese e estruturou uma organização de caráter político-militar, com uma estratégia defensiva clandestina, tendo como fundamento a ideia de que era preciso construir as bases para um grande movimento popular, numa conjuntura que era amplamente desfavorável às lutas políticas – dada a intensa repressão e a desmobilização das massas. Essa organização definiu-se como socialista e nacional, refutando modelos. Não se identificava nem com o bloco soviético nem com nenhuma outra “experiência” revolucionária, defendendo a necessidade de um caminho autônomo para o povo uruguaio. Surgia aí o MLN (Movimento de Libertação Nacional) que depois ficaria conhecido como MLN-T, ou simplesmente “Tupamaros”, alguns meses depois. Os tupamaros partiam da análise da situação do Uruguai como nação dependente, refutavam a necessidade de um alinhamento (e nisso distanciavam-se muito do Partido Comunista) e apostavam numa via nacional autônoma, historicamente determinada, construída durante o processo de lutas das classes trabalhadoras.
Combinando trabalhos de face “legal” em sindicatos e associações com ações de finanças que envolviam assaltos armados a bancos, os Tupamaros rapidamente depararam-se com a repressão policial. Após uma ação, em 1966, em que um de seus militantes morreu em decorrência de disparos efetuados pela polícia, decidiram intensificar a estrutura do trabalho clandestino. A repressão fora violenta, atingindo familiares e amigos próximos dos militantes tupamaros. Iniciou-se uma etapa de construção de moradias em locais afastados, junto com o trabalho de recrutamento de novos militantes e o estabelecimento de bases em locais escolhidos – como a base “Marquetália”, na localidade de Pajas Blancas e depois a base de Pando. Por algum tempo os tupamaros estiveram ocupados em sua estruturação, tendo em vista que o novo governo eleito, do General Gestido, contava com grande apoio popular e não parecia ser a hora de ações de enfrentamento. No entanto, Gestido morreu e seu vice, Pacheco Areco, inaugurou um governo quase-ditatorial, com medidas muito duras para as classes trabalhadoras e intensa repressão às organizações políticas de esquerda. Areco governava por decretos, sem dissolver o parlamento, e seu governo, na prática, atuava já como uma ditadura.
Diante dessa situação, o MLN iniciou uma escalada em suas ações, realizando uma ação na cidade de Pando: tomaram o quartel de Bombeiros, a central telefônica e os bancos. A repressão foi dura, com mortes de militantes tupamaros. Mas essas perdas resultaram, a seguir, em crescimento político, com novas adesões e apoio popular. Começaram a surgir os Comitês de Apoio aos Tupamaros. Esses comitês eram formados com uma maioria de cidadãos externos à organização. Com isso, os Tupamaros avançavam na sua ideia de formar um amplo movimento político. Realizavam-se ações de guerrilha para destruir aparatos policiais, mas também eventos públicos (espécies de comícios) e ações de propaganda. Os tupamaros organizavam-se em grandes colunas, algumas com mais de 100 pessoas, no que eles chamavam de “periferia de apoio”. O modelo de organização, em “círculos concêntricos”, permitia vários níveis de comprometimento com o movimento, que tinha no interior de cada círculo um pequeno grupo dirigente. As prisões de militantes eram recorrentes, assim como as ações de assaltos a presídios para resgate desses militantes. Ao mesmo tempo, um destacamento político mantinha a proximidade com as organizações legais, sendo que um destacamento, a “coluna 70”, criou um organismo legal, o Movimento de independentes 26 de Março, que participou dos debates de criação da Frente Ampla, em 1970.
Pepe Mujica era um militante do MLN. Aprendeu técnicas militares, manejava armamentos e esteve envolvido em várias ações clandestinas. Preso, protagonizou algumas das fugas espetaculares organizadas pelo MLN, como a fuga do presídio de Punta Carretas, na madrugada de 7 de setembro de 1971 – após outras fugas não menos espetaculares organizadas pelo movimento, como a do presídio feminino em 8 de março de 1970 e a escavação de um túnel sob um presídio em julho de 1971, que resultou na fuga de 38 militantes tupamaros.
Com o Golpe de Estado em 1973, muitos militantes (clandestinos ou não) foram presos, dentre eles Mujica, que ficou retido até 1984. Pepe passou por torturas e anos de solitária. Enquanto esteve preso, as lutas sociais desenrolaram-se em seu país. Inicialmente não houve capacidade de resistência dos partidos e organizações de esquerda, que já enfrentavam forte repressão e perseguição antes mesmo da instauração “oficial” da ditadura. Entre 1973 e 1985 apenas dois partidos puderam funcionar: o partido Nacional e o Partido Colorado, ambos partidos da ordem. A resistência popular voltou a se articular no início dos anos 80, quando a ditadura começa a perder força, até em razão de seus pífios resultados econômicos. O Uruguai chega aos anos 1980 com uma alta taxa de emigração, especialmente das camadas mais educadas da população, e sofre com a estagnação econômica. Com o desgaste da ditadura e o reinício de uma resistência popular, os militares decidem retirar-se, deixando no poder o Partido Colorado.
O novo parlamento eleito aprovou uma lei de anistia, sendo libertados os presos políticos, dentre eles os muitos integrantes do MLN-Tupamaros, como Pepe Mujica. O antigo movimento realiza reuniões para decidir seu futuro político e em 1987 parte dos antigos tupamaros concordam em criar o Movimiento de Participación Popular (MPP), que se autodefinia como um movimento de luta pela liberdade e pelo socialismo, passando a disputar eleições já em 1989. Alguns dirigentes dos Tupamaros, como Julio Marenares, recusaram-se a integrar o MPP, que logo mais passaria a fazer parte da Frente Ampla.
A reconstrução democrática
O Movimento de Participação Popular, a que somam-se Pepe Mujica e sua companheira, a também militante tupamara e hoje senadora Lúcia Topolansky, integra-se à nova institucionalidade do Uruguai do pós-ditadura militar. A tônica dos movimentos da esquerda uruguaia nos anos 1990 é a de reconstrução da institucionalidade do país em bases democráticas.
Busca-se mecanismos para afastar definitivamente os militares do poder político e a construção de um Estado Social capaz de fazer frente aos problemas do povo. O ensino público universal é uma das bandeiras centrais da Frente Ampla, bem como a busca por alternativas econômicas em um mundo em transição.
Temas como a reforma agrária, no entanto, nunca entraram de fato na agenda da política uruguaia. A disputa política foi se concentrando, ao longo dos anos, em dois modelos de “gestão” do estado, com uma direita cosmopolita e privatista de um lado e uma esquerda nacionalista defensora de um Estado mais presente na vida dos cidadãos do outro. O socialismo e as reformas estruturais vão perdendo espaço na agenda democrática uruguaia.
A agenda democrática caracterizou toda a esquerda latino-americana dos anos 1990 e seguintes. E a explicação para isso, de um lado, está ligada à derrota da URSS e à ascensão do modelo ocidental-liberal. De outro lado, no entanto, está também ligada às duríssimas experiências dos anos 1970-80, em que os movimentos de esquerda foram amplamente vitimados por ditaduras sanguinárias. A via democrática, portanto, impôs-se também como única forma possível de se fazer frente à tendência inexorável das elites latino-americanas de caminhar rapidamente para o fascismo e o militarismo a cada episódio de desenvolvimento das lutas populares por direitos e distribuição de renda.
Essa é a grande questão norteadora dos grandes partidos e movimentos de esquerda de nosso continente nos estertores do século XXI. As garantias democráticas e a criação de mecanismos de participação massiva tornaram-se agendas incontornáveis. Do outro lado, os partidos de direita (atualmente em crescimento em todo o continente) foram migrando da defesa de uma institucionalidade liberal para assumirem agendas de destruição das garantias sociais e de ataque direto aos mecanismos de participação popular, por mais limitados que sejam.
O governo de Tabaré Vázquez, eleito em 2005, foi o primeiro governo nacional da Frente Ampla, que até então só havia governado municípios. A campanha da Frente Ampla fixou-se em pautas democráticas, como direitos sociais e individuais: emprego, renda e liberdades. Mujica foi ministro durante o governo de Vázquez e tornou-se o favorito para disputar as eleições presidenciais, pela Frente Ampla, em 2010. Seu governo foi marcado por grandes avanços em direitos sociais e individuais, processo que se iniciara com seu antecessor, que destacara-se por políticas relativas à saúde e incentivo à alimentação saudável. Temas de saúde pública como a regulamentação do uso de cannabis como forma de combater o aumento do tráfico de drogas, direito ao aborto e casamentos homoafetivos ganharam grande espaço na mídia. O Estado passa a desempenhar dois papéis: ainda de garantidor da ordem do capital mas, ao mesmo tempo, também de regulador da exploração do capital sobre a vida das pessoas. Um exemplo desse novo papel que o Estado assume no Uruguai sob Mujica foi a lei de regulação da exposição de conteúdos para crianças e adolescentes, buscando preservar a infância do ataque brutal da publicidade, que busca monetizar e lucrar com cada minuto da vida humana. Pautas sociais, como a adoção de políticas para mitigação da pobreza e busca de investimentos em infraestrutura visando a superação da estagnação econômica também marcaram a sua passagem pela presidência.
Mujica destacou-se como porta-voz da necessária integração da América Latina. Mesmo após sua saída da presidência do país, manteve-se ligado ao tema da unidade do continente, vista como ele como a única forma de se fazer frente ao imperialismo e de se alcançar um desenvolvimento consistente para os povos de todo o continente. Muitos críticos dizem que Mujica abandonou suas raízes políticas com essa inflexão para as reformas democráticas. Mas Pepe Mujica manteve-se fiel a dois princípios que já trazia consigo desde a juventude – desde antes de se tornar um Tupamaro, quando era um jovem filiado ao Partido Nacional: a busca de um caminho autenticamente nacional (livre de modelos) e de justiça social para a maioria do povo.
A conjuntura e os métodos mudaram, e Mujica teria fracassado se não tivesse, ele próprio, feito a transição para os novos desafios que os tempos impunham. Soube adaptar-se ao tempo e ao espaço de nosso continente. Fincou seu pé em nossa história e constituiu-se, definitivamente, como um monumento político de nosso continente.
Que seu exemplo perdure e inspire a todos nós que ficamos. Pepe Mujica: presente, agora e sempre!
(*) Rita Coitinho é socióloga e doutora em Geografia, autora do livro “Entre Duas Américas – EUA ou América Latina?”, especialista em assuntos da integração latino-americana.
