Peru: a Igreja e a esquerda
Enquanto Francisco foi defensor da “opção preferencial pelos pobres”, esquerda se mantém desde os anos 90 com a imobilizante “opção preferencial pelo mal menor”
Enquanto ainda se chora a partida do papa Francisco, líder da cristandade mundial, no Peru, o cardeal Carlos Castillo, arcebispo de Lima, diz a verdade aos congressistas que optaram por servir aos poderosos que operam impunemente “dentro da lei” e àqueles que operam fora da lei, mas protegidos pelos primeiros.
No Congresso, disse Carlos Castillo, temos uns “sem-vergonhas que irritam a paciência” do nosso povo, que, em vez de serem servidores daqueles que os elegeram, preferem ser “devotos da virgem do punho” (alusão à condição mesquinha e gananciosa de uma pessoa) em vez de serem “devotos da Virgem Maria” (alusão ao amor e ao serviço ao próximo). Os políticos deixaram de ser servidores do povo para servirem a si mesmos a qualquer preço, recorrendo até mesmo à barbárie e ao assassinato, como aconteceu nos protestos contra Dina Boluarte em dezembro de 2022 e janeiro de 2023.

(Foto: Jonas Pavão / JMJ Rio 2013)
Nunca como agora, a presença marcante dos povos oprimidos, dos pobres, dos humildes, esteve tão presente no discurso e nas ações do apostolado cristão. A simplicidade do papa, sua humildade à prova da tentação arrogante de seu entorno, tocou muitos representantes da Igreja Católica, entre eles o cardeal Castillo, do Peru, que não teve receio de denunciar a perversão daqueles que, em “nome da lei” e da fé católica, delinquem e fazem leis em favor da delinquência. Ele também reafirmou que a Igreja Católica, seguindo o exemplo de Cristo, estava a serviço dos pobres e dos despossuídos.
Isso remete à “opção preferencial pelos pobres” que o papa Francisco concretizou na ação eclesial. Ele destacou o compromisso e a correspondência da “palavra de Deus” com a justiça social e o bem-estar dos mais vulneráveis, “buscando transformar as estruturas que geram pobreza e desigualdade”, longe de atos de caridade e claramente orientados a gerar consciência da realidade e da necessidade de mudá-la. Foi um claro chamado à ação concreta contra as estruturas políticas, sociais e econômicas que mantêm milhões de pessoas em situação de pobreza e opressão.
“É hora de frear os abusos”, disse o papa Francisco dirigindo-se ao mundo inteiro. E, no Peru, o cardeal Castillo disse o mesmo, dirigindo-se ao povo. O poder político deve sentir o poder do povo que, após a barbárie, está perdendo o medo e sente que se aproxima o momento de retomar as bandeiras que lhe foram arrebatadas pela repressão criminosa. É hora de acabar com o cinismo daqueles que se dizem “cristãos” quando sua atividade cotidiana é dedicada a servir ao crime com leis a seu favor e a fazer parte daqueles que transformaram o Estado em um espólio.
A mensagem da esquerda
Não é esse o discurso da esquerda socialista e daqueles que proclamam a mudança? Será que não se compreende o alcance conceitual e político da “opção preferencial pelos pobres”? Será que se está esquecendo o genial jesuíta Gustavo Gutiérrez, que sacudiu consciências próprias e alheias com a “Teologia da Libertação”? Não se tem mais lembrança de Frei Betto dizendo à polícia que “os homens não se dividem entre crentes e ateus, mas entre opressores e oprimidos, entre aqueles que querem manter esta sociedade injusta e aqueles que querem lutar pela justiça”?
O que aconteceu com a esquerda em 30 anos de liberalismo? Será que ela foi despojada de sua capacidade de reação no terreno orgânico e político? Será que o atordoamento sofrido a mantém fora do cenário político? A paixão pela divisão e pela capela própria são sintomas de um mal incurável? Enquanto moldam discursos e atitudes aos “bons modos” que aplaude a “democracia” da extrema direita. Não é suficientemente indicativo o que o “Congresso de delinquentes” vem fazendo em nome dessa “democracia”? Como é que 45 organizações, dificilmente chamadas de partidos, não são catalogadas como a mais clara demonstração do “divide e conquistarás”? Acaso não vimos no Equador que a extrema direita não tem escrúpulos para “cozinhar” resultados eleitorais?
Poderia continuar com mais perguntas, algumas mais urgentes do que outras, que a esquerda peruana deve responder com honestidade e sinceridade. Nessa tentativa, o maior esforço deveria ser dedicado a recuperar a retórica esquerdista, simples e direta, que os conecta com o povo, e deixar de construir discursos com frases rebuscadas, como quer a extrema direita. Lembremos com humildade os líderes de esquerda que foram capazes de “incendiar a pradaria” com discursos carregados de vocabulário popular, como faziam Javier Diez Canseco, Carlos Malpica, Alfonso Barrantes, entre outros.
É hora de superar a confusão e a dispersão que o neoliberalismo provocou na esquerda. A partir dos anos 90, instalou-se na esquerda uma forma de fazer política que a levaria à situação atual. Com a eleição de Alberto Fujimori, inaugurou-se, no campo da esquerda, a “opção preferencial” pelo “mal menor”, com custos que hoje se refletem no imobilismo e na dispersão de organizações sem identidade. A aposta ingênua de que o “mal menor” poderia gerar as “condições objetivas e subjetivas” para mudanças estruturais foi apenas uma ilusão do momento, mas depois se tornou uma espécie de estratégia de sobrevivência do oportunismo da esquerda.
Desde então, se as coisas não mudarem, estaremos trilhando um caminho sem volta, continuando a apostar no mal menor, em nome do qual não importou perder o próprio perfil, afundar no marasmo político e ideológico, abandonar a formação de quadros e a construção de partidos com capacidade de ser uma alternativa de poder, entre outros. Assim foi, geração após geração, até chegarmos ao momento que vivemos.
Como sair desse buraco? Como recuperar a atenção das maiorias que esperam discursos esperançosos e capazes de oferecer confiança no futuro? Essa é uma tarefa urgente. Compreender a “opção preferencial pelos pobres” da Igreja Católica como consubstancial às nossas posições políticas e ideológicas seria um bom começo, buscando recuperar a identidade e o perfil que diferenciam a proposta de esquerda das propostas centristas, ambivalentes e ambíguas que optam pelo “oportunismo”. A esquerda socialista e os progressistas genuínos deveriam aspirar a ser uma opção de poder, não uma opção de enchimento.
