Pessoa em situação de privilégio
Quando se zomba de um termo como "pessoa em situação de rua", não se está apenas rindo de uma escolha vocabular – está se negando uma luta simbólica e política
No sábado, 03 de maio, Antonio Prata publicou na Folha de S.Paulo uma crônica intitulada “Pessoa em situação de mendigo”. Com um humor que se pretende sagaz e contundente, ele acusa a expressão “pessoa em situação de rua” de ser um exagero do politicamente correto. Para Prata, esse termo não passa de um verniz sobre a miséria crua das ruas. Sua crônica se apresenta como uma crítica à assepsia da linguagem, mas o que começa como provocação contra a hipocrisia social termina por zombar de quem tenta nomear com mais precisão e dignidade uma das faces mais brutais da desigualdade urbana.
Prata não escreve como um conservador típico. Ele é o cronista ilustrado da classe média progressista, bem aceito nos círculos culturais. Seu texto não destila ódio nem desprezo. Pelo contrário, nesse caso disfarça-se de ferina crítica sofisticada à indiferença moral do país. E é aí que mora o perigo. Ao ridicularizar a expressão que movimentos sociais adotaram para nomear-se com mais respeito, sua crônica acaba replicando o mesmo desprezo simbólico que diz criticar. Beira ao escárnio. O alvo aparente é o eufemismo; o efeito real é enfraquecer a luta coletiva por reconhecimento.

(Foto: garryknight / Flickr)
Há dois anos, realizo uma pesquisa sobre a presença cotidiana de pessoas em situação de rua em uma instituição cultural pública. A observação diária dos modos de uso, conflito e convivência desse espaço tem transformado meu entendimento sobre o que a expressão “situação de rua” carrega. Aquilo que à distância parece só formalismo técnico, revela-se, na prática, como resultado de disputas reais por visibilidade, dignidade e existência. São palavras oriundas de uma luta por reconhecimento, calcada em reivindicações justas.
A presença da realidade das ruas dentro de uma instituição embaralha certezas. Exige escuta. Não se trata de adoçar a realidade da exclusão, mas de compreendê-la em sua complexidade, nos silêncios, nas tensões, nas formas de vida que escapam aos enquadramentos prontos. Dizer “pessoa em situação de rua” não é fingir que a miséria não existe. É tentar nomear sem capturar, reconhecer sem reduzir. A piada escarnecente que compara isso a “pessoa em situação de gripe” ou “situação de sono” não é só boba. É ofensiva. É uma recusa de escuta. Uma equiparação que apaga a gravidade do que tenta nomear. Verdadeiro desprezo ao poder da linguagem.
Reitero, essa expressão – pessoa em situação de rua –, é conquista de luta. Não foi imposta por burocratas ou modismos, foi uma reivindicação do Movimento Nacional das Pessoas em Situação de Rua formado por gente que viveu (e vive) a exclusão e buscou romper com a imagem penal do “mendigo”, termo impregnado por leis de vadiagem e criminalização da pobreza, rescaldo do escravagismo. Não se trata de negar a miséria, mas de romper com o estigma que a nomeia como delito. Desqualificar essa conquista como eufemismo é reforçar o próprio estigma.
Com estilo e aparente irreverência, a crônica de Prata reproduz uma hierarquia silenciosa. A pessoa em situação de rua é figurada como tipo incômodo, não como sujeito. Não há escuta. Não há interpelação. A diferença de classe não é discutida, é naturalizada. Do alto de um ponto de observação seguro, transforma-se o outro em caricatura linguística. A linguagem cuidadosa vira uma peça de ataque. E o que parece senso crítico é apenas reafirmação de privilégio: quem escreve pode estatuir; quem é nomeado, permanece fora da palavra.
A irritação de Prata não é com a miséria em si. É com a tentativa de nomeá-la com algum cuidado. Sua crítica só é possível porque parte de um lugar social que nunca precisou da linguagem para existir. Nasceu pronto e bem acomodado. O incômodo é com o deslocamento simbólico: a expressão “pessoa em situação de rua” incomoda porque embaralha a fronteira entre quem pertence à cidade e quem atrapalha sua paisagem.
Não é novo esse tipo de narrativa disfarçada de crítica. É antigo. E persistente. O Brasil segue sendo o país em que elites cultas fingem engajamento para manter distância, disfarçam desprezo com ironia e posam de rebeldes enquanto reproduzem desigualdades. Fingem que escutam para não se implicar. Fingem humor para manter o riso do alto. Fingem entender para neutralizar a luta de classes. Quando a linguagem passa a incomodar mais do que a exclusão que tenta nomear, o nome disso não é lucidez. É cinismo. Dos finos, mas cinismo.
Linguagem não é adorno. É campo de disputa. Prata sabe bem disso. Quando se zomba de um termo como “pessoa em situação de rua”, não se está apenas rindo de uma escolha vocabular. Está se negando uma luta simbólica e política. Reduzindo uma conquista a um trocadilho. É despolitizante. E por mais que venha com bom humor e verniz literário, esse gesto é, sim, parte do mesmo regime de desumanização contra o qual se finge escrever.
(*) Ricardo Queiroz Pinheiro é bibliotecário, pesquisador e doutorando em Ciências Humanas e Sociais.
