Nesta semana, uma mesma obra literária foi mencionada por dois presidentes sul-americanos. Trata-se de Cem anos de Solidão do colombiano Gabriel García Márquez. A obra foi recordada por Gustavo Petro, presidente da Colômbia, e por Nicolás Maduro, da Venezuela. Esse último abordou o tema de passagem, quando em entrevista a Breno Altman, divulgada no dia 27 de janeiro, disse que está assistindo à série Cem anos de Solidão, produzida pela Netflix a partir do romance de García Marquez. Maduro recomendou-a à audiência da entrevista. Já Petro recordou as borboletas amarelas de Macondo, a cidade imaginária do romance, em sua carta dirigida ao presidente dos EUA, Donald Trump, quando protestava contra o tratamento desumano aos latino-americanos deportados e contra as ameaças proferidas pelo mandatário da potência arrogante. O presidente da Colômbia recordou os “coronéis Aurelianos”, colocando-se como, talvez, o “último” deles.
O coronel Aureliano Buendia nasceu com os olhos abertos e escapou de um fuzilamento e mais umas tantas mortes – incluindo uma tentativa de suicídio. O personagem, isso o próprio García Márquez admitiu em uma entrevista, foi forjado a partir das histórias do coronel Rafael Uribe Uribe, herói liberal derrotado, que comandou tropas na Guerra dos Mil Dias, na Colômbia. Alguns pesquisadores também aventam a presença de Bolívar no imaginário de Gabo. Do coronel Uribe, Gabo retirou grande parte de sua inspiração para a invenção de Aureliano, tanto no aspecto físico (alto, magro, bigodes negros e espessos) quanto na atuação: um chefe militar que jamais se deixou fotografar, nem usava uniformes e galas, tal qual o segundo filho de Ursula e José Arcadio Buendia. Outros Aurelianos desfilam em Cem Anos de Solidão. Mas Gustavo Petro refere-se ao primeiro deles, o arquétipo do herói casual, que não imaginou para si nenhuma honra militar – e recusou-a quando lhe foi oferecida, muitos anos depois de depor as armas e retornar à sua cidade natal para uma pacata vida de ourives.

(Foto: República de Colombia / Flickr)
O problema da comparação de Petro é que Aureliano é um chefe militar derrotado. Heroico, porém fracassado em suas lutas, ainda que justas. Aureliano é a metáfora de um continente em infindável busca de si mesmo. Na América Latina quase todas as aventuras grandiosas foram liquidadas em acordos que excluíram as massas populares – que apoiaram o imaginário Aureliano e que também deram sustentação ao verdadeiro Rafael Uribe Uribe, com a diferença de que o homem real aceitou um acordo para depor as armas, enquanto o personagem Aureliano retirou-se para sempre. Nessa atitude, Aureliano lembra-nos mais de Bolívar, cujo “labirinto” do final da vida foi também imaginado por García Márquez em O general em seu Labirinto. Bolívar desistiu de disputar o controle do Estado que construíra, derrotado nas disputas entre os chefes militares que antes o circundavam e agora dividiam a Colômbia em vários Estados menores.
Quando recebeu o prêmio Nobel de literatura, em 1982, Gabriel García Márquez pronunciou um belo discurso em que recordou a imensa solidão da América Latina. Relembrou episódios insólitos de nossa história, como a do general Santana, do México, que fez um funeral com honras de chefe de Estado para a sua própria perna direita, perdida durante a Guerra dos Pastéis, e também a do general Gabriel García Morena, do Equador, cujo cadáver “foi velado com seu uniforme de gala e sua couraça de condecorações sentado na poltrona presidencial”, além de outras passagens não menos maravilhosas. A certa altura, disse: “A América Latina não quer nem tem por que ser um peão sem vontade, nem tem nada de quimérico que seus desígnios de independência e originalidade se convertam em uma aspiração ocidental. Não obstante, os progressos da navegação que reduziram tantas distâncias entre nossas Américas e a Europa, parecem haver aumentado nossa distância cultural. Por que a originalidade que é admitida sem reservas em nossa literatura nos é negada com todo tipo de desconfiança em nossas tentativas tão difíceis de mudança social? Por que pensar que a justiça social que os europeus desenvolvidos tratam de impor em seus países não pode ser também um objetivo latino-americano com métodos distintos em condições diferentes?”
Essa pergunta de García Márquez segue atual. Processos populares originais, como a Revolução Bolivariana da Venezuela e a Revolução Cubana, não são aceitos pelos governos de outras nações “grandes”. São sempre acusados de não seguirem as regras. Regras que foram impostas pelos mesmos Estados que oprimiram os povos da América sem qualquer regra. A originalidade dos processos latino-americanos é sempre combatida com acusações de “populismo” ou de criação de “ditaduras”. Gustavo Petro, que se reivindica um Aureliano, criticou também a Venezuela. Mas sua própria originalidade em governar a Colômbia também vem sendo atacada como “populista” pelos setores para sempre alinhados com os desígnios da Europa e de Washington.
Para o bem de nossos povos, é preciso que nem Maduro nem Petro tenham o destino de Aureliano. Quando se retirarem da política, que não seja para o auto-exílio (ou o exílio imposto) dos derrotados e desenganados. Que seja para o merecido descanso do líder popular que cumpriu sua missão de deixar atrás de si uma nova geração de combatentes, empenhados na construção de uma sociedade original, justa e solidária. A América Latina segue buscando seu curso. E a chuva torrencial de ameaças que vem vindo do Norte também terá a duração de muitos anos. Ela precisará ser suportada e enfrentada, com altivez e criatividade. De preferência em conjunto, lição que nos deixou Simón Bolívar, de que só poderemos ser livres se formos capazes de nos levantar, todos de uma só vez.