Se desde meados do século XX o avanço das tecnologias digitais abria um novo horizonte de mercado e imaginação social, sendo a cultural digital tônica fundamental na virada do milênio, o quase quarto de século que vivemos após essa virada revelou os aspectos nocivos e deletérios do qual o “avanço tecnológico” pode, sem problemas, fazer parte — a digitalização revelou-se cada vez mais um modo de integrar arcaico e moderno, atualizando formas clássicas de exploração e correndo quaisquer possibilidades, cada vez mais escassas, de organização do mundo do trabalho em prol dos trabalhadores.
Essa escassez de possibilidades está constantemente relacionada ao neoliberalismo. Seja compreendido enquanto uma ideologia, um modo de subjetivação ou uma governamentalidade própria, os processos inscritos no que chama-se de neoliberalismo — precarização e informalização do trabalho, austeridade fiscal, desmonte de políticas públicas estatais e anti-intervencionismo social que não seja mediado pelo mercado, revelando-se na generalização de princípios empresariais para todas as esferas sociais, até a própria constituição subjetiva — estão cada vez mais integrados à digitalização. Essa virada pós-fordista é marcada pela tendência econômica de valorização e acumulação de capital através do sistema financeiro, em detrimento de investimentos na produção; e tem no fim do padrão ouro para o dólar, ou seja, na crise do sistema Bretton Woods, um demarcador emblemático: a perda desse lastro sinaliza a extrapolação da dimensão virtual já inerente ao processo de valorização do valor. Acelera-se assim também o processo de digitalização.
Com o avanço dessas tecnologias no século XXI, percebemos como esse processo deturpa a regulamentação de determinados serviços e atividades através de sua reelaboração em plataformas: as redes de hospedagem se convertem na mediação plataformizada entre locadores e locatários; no “setor de mobilidade” táxis passam a disputar com motoristas de aplicativos; a fantasia de um dinheiro sem qualquer lastro e regulação estatal ganha corpo virtual com as criptomoedas; e até mesmo a criação, da literatura à música e espalhando-se cada vez mais entre as artes visuais, é delegada cada vez mais às inteligências artificiais generativas — o que coloca em xeque questões como o direito de artistas sobre o uso de suas próprias obras, que, uma vez expostas em meios digitais, podem integrar o banco de dados que serve à “criatividade artificial” das IAs generativas, produzindo uma espécie de automação socialmente “aceitável” do plágio.
Para aqueles um pouco mais velhos, que se lembram do processo de proibição dos cassinos e caça-níqueis no Brasil relativamente consolidado em 2004, vinte anos depois encontramos uma completa reviravolta nos jogos de azar em plataformas com um retorno endêmico da prática: hoje estima-se que ao menos 28 milhões de brasileiros fazem ou já fizeram apostas nessas plataformas (que vão desde as mais variadas bets digitais até o famoso jogo do tigrinho), um mercado que movimenta mais de 10 bilhões de reais mensalmente. Não espanta que algumas dessas operações (especificamente as apostas de bets, em distinção aos jogos de azar como o tigrinho) tenham alguma base legal em uma autorização de 2018, ou seja, legado do pós-golpe em sua era Temer.
Além disso, vale notar a relação com o mercado dos jogos de azar e o endividamento: matérias indicam que 44% dos inadimplentes no Brasil já buscaram as plataformas como recurso para gerar renda e quitar seu endividamento — paradoxalmente, 57% dos entrevistados afirmam terem se tornado inadimplentes através desses mesmos jogos de aposta, um situação que demonstra grave potencial de retroalimentação da prática pela dívida. Curiosamente, no colapso do projeto de sociedade assalariada, o imperativo da “renda extra” encontra nas apostas digitais um escape que tanto contribui de forma brutal para a concentração de renda quanto serve de recurso até mesmo para lavagem de dinheiro do crime organizado. Vemos aqui um exemplo explícito de como a digitalização integra tanto o processo de corrosão da sociedade salarial do século XX (como o endividamento e a concentração de renda), sem com isso deixar de atualizar e acelerar os problemas intrínsecos às condições desse projeto em desintegração.
O setor digital de apostas, que já cresceu mais de 730% em menos de quatro anos, tem sua difusão profundamente ligada ao mercado de influenciadores digitais — que são entusiastas públicos e divulgadores ávidos das plataformas, sempre contratados a partir das métricas de engajamento relativa aos seus públicos respectivos. Na área dos esportes, em especial o futebol, é assustadora a presença das bets, empresas de aposta, e isso se reflete entre os influenciadores que tratam do assunto: quase todos esperam a proposta de alguma bet. Esse mercado de influenciadores revela valores exorbitantes: influenciadores que possuem entre 100 mil e 800 mil seguidores vendem a divulgação a partir de 20 mil reais por story (postagem temporária de 24h) e 50 mil por postagem no feed. Mais assustador ainda são casos como o do contrato assinado pelo ex-BBB Felipe Prior com a plataforma Betsat, no qual ele receberia 15% da receita perdida pelos novos apostadores — modelo de contrato que seria comum nesse setor publicitário, segundo especialistas. Ou pior, o uso de “influenciadores mirins” para divulgar jogos de azar entre crianças e adolescentes — onde encontramos, por exemplo, uma criança de 8 anos ostentando notas de 50 e 100 reais, ou outra de 13 que propaga um discurso neoliberal do tipo “nasci para ser milionária, e não funcionária”.
Além do crescente descaso e desprezo pela condição — e mesmo existência — do trabalhador, podemos perceber como a digitalização cria modos de burlar legislações ou contornar regulamentações, produz condições para (des)organizar o trabalho dotando-o de informalidade e, além de tudo, criar novas formas de lucrar com a própria insegurança típica da deterioração da sociedade salarial, processo que convencionou-se chamar de neoliberalismo. Cada vez mais vemos circular conteúdos moldados pelas premissas neoliberais: empreendedorismo, auto-valoração, enriquecimento rápido por meios “disruptivos”. As apostas são apenas mais um modo dentro de tantos, mas seu crescimento vertiginoso deveria nos alertar tanto para os fatores econômicos de larga escala a curto prazo (como o superendividamento de grande parcela da população), como ao caráter compulsivo, ilusório e perverso que é inerente à disseminação dessa prática.
Ao considerarmos a plataformização das apostas e jogos de azar desde sua relação com os mercados de influência online, notamos como o processo de digitalização em curso se trata da reestruturação dos modos exploração e acumulação: dos aplicativos que lucram com sua atenção e seus dados, passando pelos influencers que lucram através de seus seguidores e visualizações, até as casas de apostas digitais, percebemos que, ao sermos abordados enquanto “usuários” pela lógica digital de mercado, também revela-se uma convergência à condição de usuário que tem, por exemplo, um dependente químico. O caráter viciante e compulsivo é indispensável, seja para manter nossa atenção ao feed, seja para continuar apostando. O caminho proposto no debate para a “regulamentação” desses tipos de mercado, como é com o caso das apostas digitais, é extremamente ingênuo, para dizer o mínimo, na medida em que ignora o caráter compulsivo desses excessos — ou o caráter excessivo dessas compulsões —, além de toda sua relação com a desintegração de certas formas sociais, como comentamos até aqui.
Deveríamos nos questionar até mesmo se é aceitável formularmos o problema nos termos de uma busca pela “saúde do mercado de apostas”, especialmente quando investigamos a relação entre digitalização e tal mercado — ou ainda, entre digitalização e saúde. A busca pela “saúde” desse mercado de apostas pode incorrer no risco de custar a saúde de um contingente cada vez maior de pessoas, custo esse por vezes irreparável, e um risco que tanto tigrinhos quanto bets estão mais do que dispostos a (nos colocar para) sofrer.
(*) Cian Barbosa é flamenguista e morador do Rio de Janeiro. Bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, tecnologia, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador do Centro de Formação.