“Paparapaparapapara clak bumm, parapapapapapapapa”. Provavelmente muitos já identificaram a referência com apenas essa onomatopéia. O funk carioca “Rap das Armas” foi lançado em 1995 pela dupla de MC’s Júnior e Leonardo como um manifesto pela paz, denunciando a violência nos morros da cidade maravilhosa, perpetrada com a utilização de armas de fogo. A música recebeu uma versão “proibidão” em 1998 pela dupla Cidinho & Doca, e se tornou um sucesso internacional. O estrelato foi coroado com a sua inserção na trilha do filme “Tropa de Elite”.
A letra musical cita um conjunto de armamentos em circulação nas comunidades: AR-15, calibre 12, pistolas 5,7×28 mm, Uru, Glock, AK-47, rifle Winchester, M16, .50, .30, .44 Magum, Beretta, Uzi, 45 ACP, FMK-3, 7.62x51mm NATO, rifle 7.65x21mm Parabellum, granadas de mão… Um cardápio invejável até para Yuri Orlov, personagem interpretado por Nicolas Cage no filme “O Senhor das Armas”, de 2005.
Tão importante quanto controlar os homens armados é controlar as armas e munições que eles manejam. No bojo da Reforma Tributária aprovada na Câmara dos Deputados, as armas e munições ficaram fora do “imposto do pecado”. O texto ainda precisa passar pelo Senado antes de ir à sanção presidencial. Em meio ao filme de terror cotidiano que se desenvolve no Congresso Nacional, essa é uma questão em aberto, devendo, exatamente por isso, ser disputada; e é a isso que este texto se dedica.
O chamado imposto do pecado é uma taxa mais alta sobre produtos considerados nocivos para a saúde e o meio ambiente, como cigarros e bebidas alcóolicas, bens não-essenciais. Sobre tais produtos incidem o IPI, PIS/Cofins e ICMS, num total de 89,25%. A federação PSOL-Rede apresentou uma emenda para incluir armas de fogo e munições entre os “produtos pecadores”, mas a proposta foi derrotada. Segundo a FGV-SP, a tributação de 89,25% que hoje incide sobre armas e munições cairia para 26,5%, a alíquota padrão da reforma tributária sobre o consumo. Desconto digno do bordão “o patrão ficou maluco!”
Maluco? Muitos parlamentares são donos de empresas de segurança, e formam o lobby pró-armas na Câmara dos Deputados, apelidado de Bancada da Bala. É de conhecimento público que esses parlamentares são favoráveis à flexibilização das regras para a compra e porte de armas e munições, e foram amplamente atendidos durante o governo Bolsonaro. Entretanto, não é de conhecimento amplo que esses mesmos parlamentares são, eles mesmos, vendedores dessas armas. Logo no início do seu mandato, Lula reverteu parte das medidas armamentistas do governo anterior.
Maluco? O filme “Senhor das Armas” se inicia com uma cena inesquecível, em que acompanhamos, em detalhes, o processo de fabricação de uma bala (munição), desde a sua concepção, produção e armazenamento; passando pelo seu transporte, distribuição ao redor do mundo e venda. A cena termina com um disparo contra a cabeça de uma criança. O personagem principal, rodeado por cápsulas já usadas no chão, levanta a seguinte pergunta: “Existem mais de 550 milhões de armas de fogo em circulação no mundo. Isso significa uma arma para cada 12 pessoas. A única pergunta é: como armar as outras 11?”
Em todo o planeta, mais pessoas foram mortas por homicídio do que por conflitos armados e terrorismo somados, com uma média de 52 vítimas por hora em 2021, antes do genocídio palestino. Em diferentes relatórios das Nações Unidas, a América Latina ostenta as maiores taxas de homicídio do mundo. Segundo a ONU, em números absolutos, o Brasil é o país que mais mata no mundo, num total de 47.722 assassinatos em 2023, 10,4% do total mundial. Em homicídios per capita, o Brasil está na 11ª posição, com 22,38 mortes a cada 100 mil habitantes. A Organização Mundial de Saúde considera epidêmicas taxas superiores a dez homicídios a cada 100 mil habitantes. E aqui nem estamos falando de feridos por armas que não morreram. Segundo Nathalie Drumond e Tahiane Piscitelli, nos últimos 15 anos houve mais pessoas amputadas por armas e explosivos no Brasil do que no Exército dos Estados Unidos em 16 anos de guerra.
O perfil daqueles que mais matam e mais morrem é bem definido: homens, jovens e negros. Os números brasileiros impressionam: 86,7% das vítimas são homens jovens. Além disso, 76,5% são negros. Segundo o Atlas da Violência, uma pessoa negra foi assassinada no país a cada 12 minutos na última década. O Atlas ainda revela que a mortalidade para feridos por armas é 3,4 vezes maior do que por outros instrumentos, e o valor médio da internação (de R$ 2.391) custa 59% a mais do que agressão por outros meios, o que sobrecarrega os serviços de assistência hospitalar e ambulatorial. Segundo o Instituto Sou da Paz, só em 2022, o Brasil gastou R$ 41 milhões do orçamento do SUS com 17,1 mil internações hospitalares de vítimas de armas de fogo. Como 50% dos assassinados são jovens até 29 anos, pode-se calcular que sua morte equivale a 1,5% do PIB do país. Uma epidemia que custa caro, não só em vidas humanas.
Mas por que tanta violência?
Uma primeira hipótese é que a violência seria fruto da pobreza. Na realidade, mesmo quando as taxas de pobreza da região caíram, não foram acompanhadas por um declínio nos homicídios. Uma segunda hipótese seria a falta de investimentos estatais na área de segurança pública. Isso também não se comprova, pois segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (2018), o montante gasto com segurança diante do total de gastos públicos da América Latina é o dobro da média dos países centrais. Uma terceira explicação estaria na falta de punição. Também não se comprova, pois mesmo com a população carcerária das Américas (excluindo os EUA) crescendo 121% desde os anos 2000, segundo o World Prision Report, as taxas de condenação por homicídios são baixas (24 condenações a cada 100 vítimas em 2016).
Um quarto elemento, este sim comprovado, é o fácil acesso a armas de fogo, que a reforma tributária, como está atualmente, pretende ampliar. A bancada da bala defende que um imposto mais baixo vai permitir que pessoas mais humildes comprem armas para defender suas famílias. Atualmente, o gasto mínimo para ter uma arma de fogo em casa é de R$ 3.700, o que equivale a mais de 2,5 salários mínimos.
A verdade é que, quanto mais gente comprar armas, maior a possibilidade de desvios, furtos e roubos dos armamentos que alimentam o crime organizado. Segundo os Institutos Sou da Paz e Igarapé, a explosão de clubes CACs (caçadores, atiradores desportivos e colecionadores) durante o governo Bolsonaro foi de 700% na região Amazônica, impactando as disputas por terras e o garimpo ilegal. No período de 2011 a 2022, o Sou da Paz identificou o desvio de nove armas por dia que acabam ingressando no mercado criminoso, a maioria da empresa brasileira Taurus. Trazer uma arma via tráfico internacional é caro e arriscado. Se é possível dar um jeitinho por aqui, melhor.
O comércio global de armas tem muitos impactos humanitários, como os deslocamentos de refugiados, as violações do direito internacional de guerras, ou o problema de armas desativadas, como minas terrestres. Mas na América Latina, até o tipo de armamento responsável pela tragédia social é diferente: predominam armas leves. Segundo os mesmos Institutos Sou da Paz e Igarapé, o Brasil fechou o ano de 2022 com a marca de 3 milhões de armas legais nas mãos de particulares no Brasil. Em outras palavras, há mais cidadãos armados do que o efetivo das Forças Armadas brasileiras (360 mil).
Desde os anos 1970, alguns países sul-americanos se dedicam à produção de armamentos. Nos anos 1980, a cooperação internacional para a produção se intensificou, e nos anos 2000, ocorreu um pico de crescimento da produção doméstica dos armamentos. Em 2020, a Taurus, única empresa brasileira entre as 100 maiores do mundo, registrou aumento de 78% em seu faturamento, atingindo R$ 1,77 bilhões. Empresas produtoras de armas “não letais”, como a Condor, acompanham o crescimento geral.
Diego Lopes (2018) explica que isso ocorreu em função da transferência de tecnologia de parceiros internacionais, da expansão e reestruturação da indústria de defesa, e da modernização dos equipamentos. Nos anos 70, a produção foi sustentada por empréstimos internacionais; nos anos 2000, pelo boom de commodities. O autor ainda aponta que, destituídos da indústria, os gastos com armamentos se tornam ferramentas para a manutenção da dependência econômica, e mais: a priorização dos bens primários na pauta de exportações nos anos 2000 teve como efeito a desindustrialização. Além disso, desconstrói a correlação direta entre investimentos na indústria de defesa e o desenvolvimento nacional puxado pelas tecnologias de uso dual. Quando isolados, os índices dos países da América do Sul indicam que não há correlação positiva entre gastos de defesa e crescimento econômico.
Na realidade, o comércio de armamentos traz como efeitos a reiteração da inserção dependente na estrutura internacional, o estrangulamento dos recursos fiscais, aumento de empréstimos econômicos e endividamento, escassez de recursos para o investimento em outras áreas, aumento das assimetrias regionais, dependência da importação de armamentos (e para a sua posterior manutenção) de difícil superação; isso sem falar no gigantesco e vergonhoso número de brasileiros mortos todos os anos. Em resumo, a riqueza social é direcionada para a compra de armas num país afligido por grande diversidade de problemas.
Ainda é tempo de barrar a redução nos impostos sobre armas e munições. A ação pode servir como marco na virada sobre a política armamentista defendida pelo bolsonarismo na prática e na retórica. Entre as muitas batalhas de ideias a serem travadas contra a extrema-direita, aquela que trata do controle dos instrumentos de violência (homens armados organizados pelo Estado ou paralelamente a ele, armas e munições, etc.) é central. Como proclama o Pastor Henrique Vieira, não há razão para armas e munições pagarem o mesmo tributo de fraldas, brinquedos ou perfumes.
(*) Ana Penido é pós-doutorada em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.